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UMA CIDADE SEM MEMÓRIA CULTURAL É UMA CIDADE SEM FUTURO HISTÓRICO

Despercebimento (comentado)

Página Maria Granzoto
Editora de Literatura Brasileira ArtCulturalBrasil
Arapongas - Paraná

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Despercebimento
(José Antonio Jacob) -

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante,
E foi além da conta, andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
 Não disse adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir.
E ao retornar ao lar: - Ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir...
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir.

 ...
 
 
Introdução

Não consigo ler uma composição de José Antonio Jacob sem, no mínimo, um mês de antecedência e sem um dicionário ou uns dicionários ao lado para tentar encharcar-me das percepções latentes! Sem falar da métrica e rimas perfeitas, mas o que mais me estonteia é o seu vocabulário! É um campo traçado de modo tão perfeito que, se não nos cuidarmos, entenderemos a mensagem de forma diversa daquela pretendida! Ah! Essa língua portuguesa “inculta e bela”! Ah! Esse banho de cultura que nos dá em cada verso! Ah! Esse poeta mineiro de Juiz de Fora!

O título

“Despercebimento”! Sabemos que é um substantivo. Mas é daí? Que outras implicações? Por que não desapercebimento? Os dois vocábulos são antônimos de outros já existentes, formados pelo habitual acréscimo do prefixo "des-"; não podemos buscar suas diferenças, portanto, sem que se volte ao estágio primitivo dessas palavras, isto é, aos verbos perceber e aperceber. Perceber é velho conhecido nosso, e integra o vocabulário do cotidiano de qualquer brasileiro. Ao lado do significado comum de "notar, dar-se conta, compreender, entender" ("agora percebo o engodo"; "ele percebeu as intenções do rival"; "não percebo o que ela comenta"), indica também "receber, auferir" (ordenados, rendas, lucros, vantagens). Já não tão conhecido é aperceber; de uso muito raro no Português moderno. Significa "aparelhar, preparar; abastecer, fornecer; acautelar-se". Morais (edição de 1813) menciona "apercebido de armas, munições, gente" (provido); "os portugueses, sempre apercebidos, vigiando-se dos mouros" (acautelados). Registra também o significado de "dispor-se de modo conveniente para fazer ou sofrer alguma coisa: apercebeu-se para a morte". Muito adequadamente, apercebimento significava tanto "preparativos" quanto "munições de boca e guerra". As cartas de apercebimento eram avisos que os reis faziam aos senhores para se aprestarem com suas gentes e armas de guerra.
Desapercebido é o que não está apercebido, isto é, não está preparado, não está prevenido, não está aparelhado ou provido, nem acautelado. Despercebido, por outro lado, significa aquilo que não se percebeu, que não se sentiu, viu ou ouviu: "o gesto não passou despercebido dos que assistiam à briga”; Eça. - Machado de Assis e Euclides da Cunha usavam o termo com muita propriedade, a exemplo de José Antonio Jacob, neste belíssimo e envolvente soneto.
Faço sempre questão de mencionar o título, auscultá-lo até, porque o mesmo dirá sempre o muito do que há de vir!
De que “Despercebimento” fala o autor? Creio que do leitor, pois o soneto é muito preciso na abordagem das palavras que o compõe.

O primeiro quarteto

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante,
E foi além da conta, andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

E lá vem mais cultura! Os primeiros "sapatos" eram feitos com pedaços de casca de árvores e pedaços de pele amarrados para proteger a sola dos pés. Os egípcios fabricavam sandálias com folhas de palmeiras e de papirus. Os gregos e romanos utilizavam umas sandálias parecidas, mas feitas com tecido, madeira ou couro, amarradas com longas tiras de couro, os primeiros cadarços.

Como sempre na história da humanidade, damos um jeito para fazer diferenciações sociais entre as pessoas, e o sapato era, e é até hoje, um bom meio para saber de que classe social a pessoa pertence. Para os romanos, o estilo do sapato era muito importante para se posicionar socialmente. Durante a idade média os sapatos eram bicudos, mas bicudos mesmo. As extravagâncias eram tantas que certos modelos precisavam ter a ponta amarrada com umas correntinhas no joelho. A moda foi ficando tão estranha que precisou ser regulamentada por lei. Foi publicado um decreto dando o direito aos plebeus de usarem sapatos com pontas de até 15 cm de comprimento, e para os nobres, pontas de até 60 cm!

A evolução seguinte (século XVI) privilegiou a praticidade e a moda voltou-se para os tamancos de madeira que ajudavam a caminhar pelas ruas e caminhos cheios de lama. No século seguinte, apareceram os sapatos decorados com flores, rendas, bordados, salto mais fino para as mulheres. Os homens utilizavam botas que subiam até as coxas, mas sempre de salto. No final do século, a moda era de sapatos baixos, de salto vermelhos, bicos quadrados e enormes laçarotes e borboletas que aos poucos foram substituídos por grandes fivelas.

Os sapatos começaram como uma simples proteção e foram, aos poucos, se tornando objetos que "embrulham" os pés. E eles dizem muito da nossa vida! Daí a importância da pesquisa sobre o assunto e só então perscrutar as variantes da mensagem contida no soneto.

E por que um sapato desbota? Pela demasiada exposição ao sol que causa um efeito reativo e as cores podem migrar ou desbotar. Os sapatos desbotados podem significar que o indivíduo é um andarilho e possui um único par de sapatos ou é um descuidado com seus objetos pessoais. É evidente que a primeira opção é a mais próxima. “Ele saiu de casa e foi distante,/E foi além da conta, andou bastante,/Até achar caminhos nunca achados.” E quanto significa esse “distante”? Depende do conhecimento de mundo de cada pessoa. A distância poderá ser uma antítese e estar mais próxima do que imaginamos! Vejam que ele foi “além da conta, andou bastante” O que é “além da conta”? O que significa andar “bastante”? Ir além significa transcender, passar de um limite. É ignorar os confins. Além do espaço temporal, como na visão de Nietzsche, em que o homem necessitava de um sentido na vida para viver. Ele reavaliou os valores segundo o qual o homem deveria ver o sentido da vida na própria vida. Isso significa que a transcendência para o sentido da vida volta-se para o interior do próprio ser humano e não para algo supra-sensível. Certamente à procura de algo que lhe faltava e de alta relevância em sua vida! De tanto andar descobriu “caminhos” nunca encontrados e percorridos! São os atalhos, as veredas, os oásis, as encruzilhadas que percorremos ao longo da existência, em busca de alguma coisa que poderá transformar a nossa vida, aquela vida sonhada, mas nunca vivida.

O segundo quarteto

Esse homem, descontente e itinerante,
Não disse adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Aqui os versos ratificam as idéias subentendidas no primeiro quarteto: “homem descontente e itinerante” que, ao decidir pela partida, nem mesmo se despediu das pessoas com quem convivia, levando-as às lágrimas. Partiu, simplesmente. Foi em busca do que lhe faltava, confiando na sorte, aqui personificada por letra maiúscula. Mas o que é a Sorte? Esta do soneto é a sorte filosófica, que pode ser definida de uma maneira um pouco mais romântica: a sorte é o encontro da imaginação com a realidade.

Poderíamos pensar como os cientistas, que a imaginação não passa de uma fantasia, simplesmente não existe. Mas para adquirir este tipo de sorte, temos que ter um pensar mais abrangente, como os filósofos. Para um filósofo a imaginação naturalmente existe. Tudo o que pensamos com certeza existe, pois se não existisse, como poderia ser pensado? Tentemos agora pensar em algo que não existe. Quem conseguirá? Claro que ninguém. Se pensarmos em um dragão de quatro cabeças, este personagem veio de algum lugar. É exatamente isso, de um lugar que até hoje é completamente desconhecido pelos cientistas, mas um velho conhecido dos filósofos. É o mundo das idéias de Platão, o mundo dos números de Pitágoras, o mundo dos deuses gregos, cheio de luz e energia. E é através dele que se chega muito mais facilmente ao conhecimento científico, ou seja, sendo filósofos, podemos ser cientistas, sendo apenas cientistas, jamais seremos filósofos e por isso não teremos o conhecimento da verdade universal.

A Filosofia é um dom, não pode ser adquirida em um banco de escola. Ao ter o dom da Filosofia, o homem pode ser o melhor cientista do mundo. Um exemplo disso foi um filósofo que se tornou cientista: Albert Einstein.

O primeiro terceto

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir.
E ao retornar ao lar: - Ó Sorte inglória!

Tudo o que sonhou e desejou ficou no mundo das idéias. Não foi concretizado. Não se tornou a realidade sonhada e buscada! A Sorte vã e a peregrinação frustrada. O objetivo não atingido. Felizmente a vida não é feita apenas de perdas e as nossas vitórias, principalmente aquelas batalhadas, mas também, e porque não, aquelas fruto do acaso e da sorte, trabalham a favor da nossa autoestima. Só que as vitórias são só felicidade, ou alguém tem dificuldade em aceitar uma vitória? Difícil e dolorido é aceitar a derrota!

O último terceto

Nenhum sorriso amado viu sorrir...
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir.

Voltando à realidade que abandonara em busca de uma felicidade completa, foi ignorado por aqueles aos quais nem disse adeus quando partiu. Por mais que buscasse recursos reais para fazer-se notar e demonstrar que ainda existia, que estava vivo. Mas todos o ignoraram. Foi um completo “Despercebimento”!

Conclusão

É importante analisarmos o vocabulário utilizado pelo autor, visto que ele traz em seu bojo, toda a mensagem do soneto. De início abordei a questão do prefixo -des, que aparece no título e nas palavras “desbotado” e “descontente”. Esse prefixo de origem latina indica sempre separação, negação. Interessante notar o uso dos advérbios de negação, pronomes indefinidos, a palavra “adeus” (uma palavra tão pequenina pode ter tanto significado, pode ser tão cruel e definitiva). Para Umberto Eco “o discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência” de cada leitor.

Aristóteles, o pai da teoria da arte e, metonimicamente, pai da teoria da literatura, trata de algumas figuras. Tradicionalmente, há um repertório infindo de figuras de linguagem, com nomenclaturas diversas, heterogêneas e, até, contraditórias. A própria ambigüidade da classificação das figuras revela a natureza conotativa de todo discurso: a denotação seria, então, uma utopia, na medida em que o poeta, por exemplo, almeja que a palavra seja a coisa, o ícone seja o real, o signo seja o ser. Para além da polissemia de todo enunciado, as figuras também se misturam, configurando um concerto significativo.

Na literatura – arte da palavra, ou, como conceitua Roland Barthes, arte da linguagem – as figuras ocupam um lugar privilegiado de estudo, de mediação e de meditação. A categoria semântica fundamental se apresenta nas palavras para o escritor e para o leitor.

Na minha leitura de mundo, de fatos, pessoas, sentimentos e uma infindável gama de enfoques, não é possível ler as produções de José Antonio Jacob sem engalfinhar-se nos emaranhados da Língua Portuguesa, da Sociologia, Psicologia, História e outras tantas ciências.

Mas, para o bem e para o mal, a realidade é mais parecida com a parábola do Rei Persa, que pede ao artista do reino uma obra de arte que o ajude a ficar feliz quando está triste e triste quando está feliz, e este lhe presenteia com um anel com os dizeres: "Tudo acaba". Mais rapidamente àquele que falta preparo para enfrentar os desafios da vida. Vive em “Despercebimento”! Quanto mais rápido aceitamos a perda, mais rápido podemos começar de novo. Essa é a beleza da vida.

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Um comentário:

  1. Anônimo10:06

    Matéria de primeira! Quem sabe, sabe mesmo, parabéns professora Maria Granzoto da Silva! Também considero o Jacob um dos principais sonetistas brasileiros em todos os tempos.


    Afirmo e assino
    Laerte Sobreira - Rio - RJ

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