Maria Granzoto comenta Érico Veríssimo
Arapongas - Paraná
Érico Veríssimo
Cruz Alta - RS
1905 - 1975
“Em geral quando termino um livro encontro-me numa confusão
de sentimentos, um misto de alegria, alívio e vaga tristeza. Relendo a obra
mais tarde, quase sempre penso ‘Não era bem isto o que queria dizer’.”
(O escritor diante do espelho)
De família rica e tradicional de estancieiros, arruinada economicamente no início do século passado, Érico, ainda jovem, viu-se obrigado a exercer várias atividades modestas, como ajudante de comércio e balconista de farmácia. O escritor viveu o drama da decadência e nela se inspirou para escrever muitos de seus melhores textos.
Constelação de Escorpião). Por sua forte coloração avermelhada e localização na constelação é conhecida também por Coração do Escorpião. Antares é uma supergigante vermelha, distante aproximadamente 600 anos-luz da Terra, 300 vezes maior que nosso Sol (estima-se um raio aproximadamente igual a órbita de Marte) e 10.000 vezes mais brilhante. É conhecida como uma das quatro estrelas guardiãs do céu.)Com menos de quatro anos, foi vítima de meningite, agravada por uma broncopneumonia, quase vindo a falecer. Salvou-se graças à interferência do médico Olinto de Oliveira, renomado pediatra, que veio de Porto Alegre especialmente para cuidar de seu caso.
Foi bom aluno,contudo, a completar os estudos secundaristas: dois anos mais tarde ele voltou para sua cidade natal a fim de ajudar no orçamento doméstico. É considerado autodidata.
Até 1927, o escritor revezou-se em três funções: bancário, professor particular e sócio de uma botica, onde trabalhou até 1930. Em 1929, o mensário "Cruz Alta em Revista" publicou, pela primeira vez, um conto de Érico Veríssimo: "Chico: um conto de Natal". O colega de boticário e escritor, Manoelito de Ornellas, enviou ao editor da "Revista do Globo", em Porto Alegre, os contos "Ladrão de gado" e "A tragédia dum homem gordo", sendo ambos aprovados e publicados.
Com a falência de sua farmácia, Érico Veríssimo mudou-se, definitivamente, para a capital gaúcha a fim de dedicar-se aos seus escritos. Passou a conviver com escritores já renomados, como Mario Quintana e outros. Foi contratado para ocupar o cargo de secretário de redação da "Revista do Globo", assumindo no início de 1931. Nesse mesmo ano, casou-se com Mafalda Halfen Volpe, com quem teve dois filhos, Clarissa e Luis Fernando. Ainda em 31, lançou sua primeira tradução, "O sineiro", de Edgar Wallace, pela Seção Editora da Livraria do Globo.
Conquistou, com "Música ao Longe", o Prêmio Machado de Assis, da Cia. Editora Nacional e, no ano seguinte, seu "Caminhos Cruzados" era premiado pela Fundação Graça Aranha. Seguiram-se outros romances, no ritmo de um por ano, mas foi somente com "Olhai os Lírios do Campo", de 1938, que seu nome tornou-se realmente popular, conhecido em todo o país.
Érico passou três meses nos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado Americano, em 1941, proferindo conferências, nas quais se empenhou em divulgar a literatura e a cultura brasileiras. Nesse período lançou “Breve história da literatura brasileira”. As impressões dessa temporada estão em seu livro "Gato preto em campo de neve". Dois anos mais tarde, temendo uma perseguição da Ditadura Vargas, voltou àquele país com toda a família para lecionar Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia. Só retornou ao Brasil quatro anos mais tarde.
Sem nunca se subordinar a um determinado partido, Érico assumiu sempre posições políticas públicas e corajosas.
Seu prestígio internacional cresceu a tal ponto que, em 1953, três anos depois de se desligar definitivamente da Globo, assumiu a direção do Departamento de Assuntos Culturais da OEA (Organização dos Estados Americanos), cargo que exerceu até 1956, em Washington.
Érico Veríssimo sofreu o primeiro infarto do miocárdio em 1961. Dois anos mais tarde, a mãe do escritor faleceu.
Foi agraciado com o prêmio "Intelectual do ano" (Troféu Juca Pato), em 1968, em concurso promovido pela "Folha de São Paulo" e pela "União Brasileira de Escritores". No ano seguinte, a casa onde Érico nascera, em Cruz Alta, foi transformada em Museu Casa de Érico Veríssimo.
Em 1971, foi editado o livro "Incidente em Antares".
Homem reservado, avesso a quaisquer atitudes radicais, mesmo de combate à Ditadura Militar, embora a abominasse como a tantos outros regimes que no século passado afligiram a humanidade, Érico representou a atitude do homem comum, não ativista.
O escritor faleceu subitamente no dia 28 de novembro de 1975.
Seus livros foram traduzidos e publicados em quase todo o mundo: EUA, Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Áustria, México, URSS, Noruega, Holanda, Hungria, Romênia, Argentina, etc.
“Breve história da literatura brasileira” de Érico Veríssimo
Segundo MARIA DA GLÓRIA BORDINI(PUCRS), em 1945, Erico Verissimo lançou nos Estados Unidos Brazilian Literature; an outline, pela The Macmillan Company. Reunia, sob forma de uma apresentação sumária da história da literatura brasileira, do período colonial à Geração de 45, o conteúdo de conferências públicas que pronunciara em janeiro e fevereiro de 1944, na Universidade da Califórnia em Berkeley e no Mills College de Oakland. Reeditada em 1969, pela Greenwood Press, de Nova Iorque, a obra permaneceu inédita em português até ser traduzida como parte do Projeto de Informatização e Ampliação do Acervo Literário de Erico Verissimo do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS e sai em 1995 publicada pela Editora Globo, com o título de Breve História da Literatura Brasileira.
Erico não confiava em sua capacidade de historiador da literatura, motivo por que manifestou a sua família o desejo de que o livro nunca fosse publicado em português. Essa atitude defensiva já aparece no "Prefácio", advertindo o leitor de que seu trabalho é esquemático, incompleto, eventualmente pouco fiável, porque fundado mais na memória do que nas fontes. Faz questão de salientar que não pretende senão introduzir o processo de formação e desenvolvimento da literatura nacional para um público que o desconhece, visando estreitar laços de mútua compreensão entre norte-americanos e brasileiros, ao estilo do discurso da política da Boa Vizinhança de Franklin Delano Roosevelt, que ele representava como convidado do Departamento de Estado nos Estados Unidos.
De fato, seu trabalho não institui um projeto inovador no âmbito da historiografia literária. De acordo com o molde romântico de Dilthey, divide a história em períodos, unificados internamente por uma visão de mundo singular, expressa nas obras que os compõem. Por outro lado, o fio condutor que faz a costura dessa divisão peca pela ingenuidade política: Erico quer provar aos americanos que o Brasil possui uma literatura diferenciada, em virtude do caráter mais "humano" do povo brasileiro, a que os escritores só gradualmente fazem jus, à medida que abandonam modelos importados e preocupações elitistas, como o jogo formal ou a relação imitativa com os clássicos europeus.
Sua incursão na história da literatura, entretanto, não é tão inepta nem tão previsível como ele dá a entender. Em primeiro lugar, tem uma consciência de romancista quanto às limitações do trabalho do historiador. Não é outro o sentido da observação que faz (à p.1) sobre a impossibilidade de reconstituir ou localizar rigidamente os fatos históricos, e sobre a facilidade do ficcionista em recriá-los sem as peias da cronologia ou da busca de objetividade. Essa consciência da falibilidade do historiador ante os acontecimentos a serem narrados, que reduz o rigor do discurso histórico e o impele para as fronteiras da ficção, leva-o a desculpar-se por acentuar ainda mais a incerteza de suas informações, fazendo mais ou menos um esboço da literatura brasileira. Para Erico, o fato literário não é objeto científico, mensurável ou quantificável, mas questão de gosto e opinião (p.2) – um objeto a ser fruído conforme as convenções de um determinado tempo e das diferentes nacionalidades.
Essa atitude ao mesmo tempo rebatia possíveis exigências de cientificidade, esperáveis no ambiente acadêmico norte-americano ainda modelado por teorias positivistas da História, e induzia a platéia leiga a encarar a literatura brasileira como a de um povo irmão, cujo bom caráter e pacifismo lhe eram constantemente frisados.
“Tudo o que o Brasil precisa é resolver seus problemas mais sérios e urgentes: o analfabetismo, a pobreza e a doença entre as classes mais baixas (...). Quanto à literatura de meu país – seu traço proeminente nos últimos dez anos é que os escritores brasileiros deixaram de ser meros malabaristas verbais, imitadores esnobes das modas literárias brasileiras ou tíbios elfos, habitantes da torre de marfim: pisaram em terra e deram as mãos ao homem comum nessa cruzada universal por um mundo melhor de paz, fraternidade e liberdade.” (p. 153)
Recorde-se que Erico Veríssimo proferia essas conferências ante um público que vivia os conflitos finais da Segunda Grande Guerra, e que desconfiava dos países latino-americanos, vistos em geral como selvagens e preguiçosos, mas naquele momento como ameaça porque neles a penetração nazista fora relativamente fácil e as alianças com a América não haviam se mostrado estáveis.
Interessante a observação que faz na introdução da obra:
“(...) muitas das passagens citadas neste livro não foram escolhidas por serem as mais representativas de seus autores ou épocas, mas apenas porque produzem boas gargalhadas ou uma leitura agradável (...) não sou um crítico, mas um contador de histórias. Essa não é uma versão sem preconceitos da literatura (...) não tomei o lugar de Deus; contentei-me com o de um leitor comum, que às vezes pode estar errado, mas que não pretende jamais trair seus próprios gostos e desgostos.” (p. 13-14)
Estruturalmente, essa história possui elementos recorrentes no desenrolar de seus doze capítulos. No primeiro, intitulado "Tão boa é a terra", delineia-se o modelo epistemológico a ser adotado. Ao descrever o primeiro momento de nossa história da literatura, o que Erico faz é arrolar, em séries paralelas, a história mundial e a brasileira, contextualizando a vida literária nas suas raízes sócio-econômicas. O desprezo pela subserviência à Metrópole o induz a valorizar, no período da colonização, as manifestações folclóricas, com destaque único a Gregório de Matos como autor erudito, fazendo antes a história do povo do que das elites, que apresenta como espoliadoras – à maneira de certos povos desenvolvidos contemporâneos, em que ele inclui sutilmente a sua platéia, pela ironia com que retrata os progressos do colonialismo no Brasil.
Exemplo dessa apresentação inter-relacionada de História e Estética é o Capítulo 3, "Problemas na Arcádia". Fala nas bandeiras, no ciclo de expansão territorial, na Província do Ouro, na Ilustração enciclopedista, na independência dos Estados Unidos, nos aeróstatos, na Revolução Francesa, para explicar o deslocamento da vida intelectual das academias para as arcádias, sob o conservadorismo contraditoriamente revolucionário dos jesuítas, e destaca Antônio José da Silva, o Judeu, como representante do período, sem deixar de sublinhar sua condenação à fogueira pela Inquisição.
No Capítulo 4, "Minha terra tem palmeiras", dedica-se ao Romantismo: o cultivo da voluptuosidade do tédio, no dizer machadiano. Castro Alves é o único destaque na poesia por seu compromisso social. Na prosa, a atenção recai sobre José de Alencar. Não vejo nenhum outro escritor em língua portuguesa que possa comparar-se a ele no que se refere a enredo e ação. (...) Você pode achá-las muito superpovoadas de improbabilidades, sentimentalismos e algumas platitudes literárias. Mas assim mesmo ficará fascinado pelas coisas que acontecem em suas histórias, por seu colorido, e às vezes pela limpidez e beleza de aquarela de sua escritura (p.49).
Nota-se que o Autor demonstra certa impaciência para com nossos românticos, exigindo-lhes uma masculinidade – traduza-se por menos sentimentalismo – de focalização e dicção que só encontra em Castro Alves, José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida. Esses requisitos, a boa história, apaixonante pelo pathos, ou o poema viril, não intimista, mas participante, coadunam-se com o interesse pelo nacionalismo e pela emancipação do povo, típicos da chamada Geração de Trinta, que Erico integrava, e também com o desejo de formar um público leitor cativado pela narratividade, traço este que tanto marcou a literatura de Verissimo.
O Capítulo 5, "Sim, mas serpentes e escravos também", centra-se no Segundo Império e vê com olhos favoráveis D. Pedro II. Concede a O Ateneu de Raul Pompéia a honra de ser um dos dez melhores livros brasileiros de todos os tempos (p.65). Quanto a Machado de Assis, reprova-lhe a filosofia cínica, embora louve sua agudeza psicológica e seu manejo da ironia. Explica o cinismo machadiano pelas desvantagens físicas do autor e não o percebe determinado pelo próprio mundo narrativo. Essa interpretação positivista de Machado permite deduzir-se que o universo literário, para Erico, nessa época, é uma espécie de reflexo não fingido da cosmovisão do escritor.
Curiosamente, no Capítulo 6, "Largas são as asas de Pégaso", retoma o tema do positivismo, para opor-se ao ideário que resultou numa proclamação operística da República. Tangencia o Parnasianismo europeu e brasileiro, valorizando o Bilac erótico, e o simbolismo francês e caboclo, em que prefere exaltar Cruz e Souza. Sem dedicar longo espaço à literatura de ficção, desenvolve mais o registro do ensaísmo histórico e crítico, e nele avalia as histórias da literatura de Sílvio Romero e José Veríssimo como pesadas e acumuladoras de informação não interpretada.
Quando aborda, no Capítulo 8, "Os movimentados anos 20", utiliza, como abertura, a metáfora de um avião que sobrevoa uma ilha – alto, dá contornos bem delineados, baixo, detalha insuspeitados e intrincados padrões (mais tarde utilizaria a mesma metáfora em O arquipélago). Vai daí que o olhar ao passado é fácil, porque o tempo é o nosso melhor aliado e conselheiro: já fez a sua escolha confiável. Entretanto, a literatura contemporânea é o problema do historiador, porque não há distanciamento perspectivista e as escolhas se tingem de interesses mais imediatos, não apenas estéticos. É assim que confessa sua dificuldade em avaliar a década. Não a está observando de cima, é parte dela e ali estão amigos e adversários, lugares amados ou abominados.
Nessa década, sublinha a atividade literária e intelectual de Lobato, por razões dignas de exame. É legível, inteligente, comprometido com a transformação do País, um agente e não mero testemunha da História. A exigência de comprometimento, que atravessa longitudinalmente a obra, faz-se mais insistente no presente e passado próximos e fundamenta a evidente preocupação de Erico Verissimo em atribuir à vida literária uma função ética, por utópica que seja, no cenário da História geral.
A análise dos anos 20 se completa no Capítulo 9, "A pedra e o caminho", dedicado à Semana de 22, e no Capítulo 10, "A maturidade de uma literatura". Vendo o Modernismo como uma encruzilhada, aponta os três rumos mais importantes que dela partem: o socialista dos Andrades, o cristão de Tristão de Athayde e o fascista, de Plínio Salgado. Macunaíma, para Erico, é o livro paradigmático da época. Foge às três tendências e fornece uma imagem total do País, fortemente enraizada na realidade do povo e da língua. Alegoria do Brasil, pela informidade e desordem aparente da composição, dá conta da heterogeneidade da nação e ainda por cima narra-se em brasileiro.
No levantamento do ensaísmo desse período, ressalta a Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho – que parece ter orientado a sua própria tentativa – e a produção de Nelson Werneck Sodré e Afrânio Peixoto, Tristão de Athayde, Álvaro Lins, Moysés Vellinho, Augusto Meyer e outros mineiros e sulistas, bem como a de Antonio Candido, homem maduro ao fim dos vinte anos (p.127), revelando amplo conhecimento da atividade intelectual do País.
A atenção dada aos líricos modernistas, que se manifesta não apenas sob forma de juízos apreciativos, confirmados pela tradição crítica posterior a essa obra de Verissimo, mas pelas citações escolhidas a partir de um conhecimento bem fundado do funcionamento do texto poético desvela um lado ignorado do romancista: seu desembaraço diante da poesia, fruto de uma intimidade que só uma experiência de leitura continuada e particularmente sensível à construção do verso poderia alcançar. Esse leitor apurado de poesia, porém, não renuncia à busca de um vínculo ético entre a autonomia da obra de arte e realidade social. Ao falar logo em seguida dos anos 30, dedica longo espaço à análise política da emergência do Estado Novo e das relações Brasil-Alemanha, sem omitir suas repercussões entre os intelectuais. Condena radicalizações de esquerda ou direita e reclama um conceito de compromisso apartidário, sob pena de arruinar-se o fazer literário.
O romance de 30 é examinado no Capítulo 12, "A colcha de retalhos", sob o pano de fundo da vastidão territorial e diversidade regional, quando se vale da tese do arquipélago cultural de Moog. Apresenta a produção ficcional de todas as regiões, prognosticando os nomes que a história da literatura posterior consagraria.
Alonga-se mais quando fala de amigos pessoais, como Jorge Amado, Oswald de Andrade ou Dyonélio Machado. Clarice Lispector é vista como uma estreante de que só teve notícias por amigos e Graciliano recebe uma concisa menção como notável contador de histórias. Seu estilo é seco, preciso e correto (p.152). Em virtude da proximidade com os protagonistas desse período literário, nesse capítulo Erico faz pouco mais do que mencionar nomes e tomar posições quanto a eles, sem alongar-se na análise do conjunto ou em juízos estéticos que poderiam revelar-se parciais.
Essa história da literatura de Veríssimo é encerrada com uma apologia do brasileiro boêmio, que valoriza mais o afeto que o dinheiro, numa espécie de crítica velada ao primado do capital na sociedade norte-americana. Em seguida, o Autor faz sua profissão de fé política pela democracia livre, com o máximo de liberdade individual e de bem-estar geral e defende uma atividade literária não subserviente, de pés fincados no chão nacional e de mãos dadas às do homem comum na batalha pela paz e fraternidade. (O grifo é nosso).
O que individualiza a atitude de Erico Verissimo como historiador da literatura é, principalmente, que se trata de um escritor falando de outros escritores. O fato de estes estarem distanciados ou próximos na linha de tempo não invalida as valorações pela posição no presente que Erico realiza. Não os julga a partir das condições sociais que teriam influído sobre eles e sim por seu credo literário constante, o do compromisso entre literatura e vida, não ao estilo marxista, mas ao seu: o da eficácia da relação texto-leitor.
Sua simples disposição em esboçar uma história geral de nossa literatura já é inusitada. Outros escritores não empreenderam tarefa igual e se detiveram preferencialmente em certos setores, como Bandeira, com a poesia – embora tenha escrito uma história da literatura ocidental, ele não tentou descrever a brasileira – ou Mário de Andrade, com a música, ou em seus ensaios críticos. O conhecimento do outro, do colega escritor, evidenciado na escolha hábil das citações e igualmente na dificuldade em esgotar as contribuições contemporâneas sem omitir nomes, atesta que Erico escreveu sua história não só com base em outros historiadores, mas a partir de uma experiência pessoal de leitura.
A história da literatura, tal como a exerce, se não pode emular a força efabulatória e liberadora que ele vê na literatura, pelo menos deixa-se contaminar por ela e propõe interpretações, cai em paradoxos, arbitra sobre quais obras ficarão contidas em tal ou tal recorte do tempo, exerce atos sintéticos e, portanto, criativos. Se o historiador Erico lê esses recortes pelo ângulo limitado do horizonte em que se encontra na década de 40, não se pode negar que também é desafiado por eles, resultando sua narração em constatações não previstas, que emergem do próprio processo do historiar, provenientes do intercâmbio com as obras.”
Considerações sobre “Incidente em Antares”
Em Incidente em Antares o escritor explora o absurdo e o fantástico, tendo como pano de fundo a história mais recente do país. Após descrever a origem de Antares (o próprio Brasil), ocorre o incidente: na imaginária cidade, em dezembro de 1963, faz-se uma greve de coveiros; em represália, os cadáveres insepultos resolvem ressuscitar e denunciar a corrupção que se alastrava entre os moradores da cidade. É uma espécie de fábula da situação que vivia (?) o país, uma sátira antiburguesa, misturando o ficcional absurdo com figuras reais de nossa política.
Considerações sobre “Incidente em Antares”
Em Incidente em Antares o escritor explora o absurdo e o fantástico, tendo como pano de fundo a história mais recente do país. Após descrever a origem de Antares (o próprio Brasil), ocorre o incidente: na imaginária cidade, em dezembro de 1963, faz-se uma greve de coveiros; em represália, os cadáveres insepultos resolvem ressuscitar e denunciar a corrupção que se alastrava entre os moradores da cidade. É uma espécie de fábula da situação que vivia (?) o país, uma sátira antiburguesa, misturando o ficcional absurdo com figuras reais de nossa política.
No livro, dividido em duas partes, mesclam-se acontecimentos reais e irreais. Na cidade fictícia de Antares, ( na verdade Antares é uma estrela de 1ª magnitude localizada no centro da
Apresenta-nos, o autor, na primeira parte, o progressivo acomodamento das duas facções (os Campolargo e os Vacariano) às oscilações da política nacional e a união de ambas em face da ameaça comunista, como é conhecida, pelos senhores da cidade, a classe operária que reivindica seus direitos.
Na segunda parte, o "incidente": a greve dos coveiros. Morrem inesperadamente sete pessoas em Antares: D. Quita (esposa que ajuda a manter o tratado de paz). D. Quita se levanta e abre o caixão dos outros falecidos: Cícero Branco (o advogado antiético), Prof. Menandro Olinda (o pianista alienado), Barcelona (o sapateiro anarco-sindicalista), João da Paz (torturado até a morte devido a uma falsa acusação de atividade comunista), Erotildes (a prostituta decadente) e Pudim de Cachaça (o - adivinhem! - bêbado inveterado). Os coveiros se negam a efetuar o enterro, a fim de aumentar a pressão sobre os patrões.
Os mortos, insepultos, adquirem "vida" e passam a vasculhar a vida dos parentes e amigos, descobrindo, com isso, a extrema podridão moral da sociedade. Como as personagens são cadáveres, livres, portanto, das pressões sociais, podem criticar violentamente a sociedade.
“A idéia é simples. Amanhã pela manhã marcharemos todos sobre a cidade para protestar... “-“Uma greve contra os grevistas! - entusiasma-se Dona Quitéria. - Se o fim da marcha é esse - intervém Barcelona -, não contem com este defunto. - Espere - diz o advogado, tocando o braço do sapateiro. - Usemos de todas as nossas armas. Primeiro, a nossa condição de mortos. Sejamos mais vivos que os vivos. - Como? - Impondo à população de Antares a nossa presença macabra. Se não nos enterrarem dentro do prazo que vamos impor, empestaremos com a nossa podridão o ar da cidade. - Que coisa horrorosa, doutor! - diz Erotildes, ajeitando os cabelos num gesto faceiro. - Por que não se põe em votação a proposta do Dr. Cícero? - pergunta o sapateiro. - Bom - faz o advogado. - Não direi que aqui em cima estejamos numa democracia. Imaginemos que isto é uma... uma tanatocracia. (E os sociólogos do futuro terão de forçosamente reconhecer este novo tipo de regime.) Preciso saber se todos vocês me aceitam como advogado, caso em que terão de me passar uma procuração verbal para eu agir em nome do grupo. Dona Quitéria sacode a cabeça num movimento afirmativo. Erotildes, Pudim e Menandro a imitam. Barcelona, porém, hesita: - Primeiro quero conhecer melhor o plano. - Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria ruma da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa... Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera. - E que é que você vai fazer? - quer saber João Paz. - Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes... Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal... ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético... e moral, naturalmente."
Num determinado momento, o advogado refere-se a um baile : “ - E que baile! Também tomei parte nele e usei mil máscaras, mil disfarces. Aprendi a manipular a moeda corrente (falsa mas fácil) das mentirinhas cotidianas, das grandes mentiras e das meias verdades... Tornei-me um mestre em todas as vossas danças e contradanças. Respeitei o vosso código, que manda aceitar as imposturas e simulações dos outros mascarados para que eles, em retribuição, aceitem as nossas...
– Avisto presidente do Rotary.. E o do Lions? Presidente da Associação Comercial, se não me engano, procura vestir-se de acordo com os grandes empresários americanos. “
Em represália, os sete defuntos realizam ali mesmo uma espécie de CPI macabra revelando a toda a população, as falcatruas, desvios de verba pública, remessas de dinheiro para o exterior, além da exposição nua e crua das atitudes antiéticas dos médicos locais e das traições e romances escusos de homens e mulheres de moral ilibada da alta sociedade antarense. Parece que o “Incidente” é um retrato do Brasil de hoje!
Personagens
É sumamente relevante que sejam analisados os nomes e sobrenomes dos personagens envolvidos, especialmente dos mortos, e as características e funções de cada um. É enriquecedor! Por que “ Cícero Branco”, “Erotildes”, “Pudim de Cachaça” e assim por diante!
Operação Borracha. Os aliados da campanha são: o tempo, lavando e apagando tudo; o bom senso, negando a possibilidade de mortos falarem, transformando tudo em "lenda macabra". Retrato fiel dos anos que antecederam o golpe militar de abril de 1964, este livro permanece atualíssimo denunciando, mais uma vez, o abismo das diferenças sociais no Brasil e a corrupção crônica de muitos de nossos políticos e da classe dominante.
Em entrevista concedida a Celito de Gandi, em 1971, Érico, ao responder sobre o questionamento do repórter, quanto a situação de Incidente em relação as suas outras produções, disse, textualmente: “_ Não costumo situar meus livros, não porque acho isso inútil, mas sim porque me falta visão crítica, disposição natural... e tempo. Uma vez assisti, no Mills College de Oakland, California, USA, a uma conferência do escritor Julien Green, que lá pelas tantas disse: “ O romancista é um alucinado que se assusta dos fantasmas que ele próprio cria”. Acho que isso, pelo menos em parte, é verdade. Jamais um “alucinado” será capaz de examinar-se objetivamente, com olho crítico, neutro e classificador. Ora, as palavras de Green me parecem verdadeiras só “em parte” porque esse “alucinado” trabalha muitas vezes com método. Eu tenho o meu. Começo um romance fazendo um roteiro parecido com os de cinema e ás vezes chego a desenhar a cara dos personagens... Ma lá de repente fico tomado por esse curioso demônio que costuma visitar os novelistas e lá se vai o método águas abaixo. O resto é mistério.”
Bibliografia Básica
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4. AYALA, Walmir. Minha infância com Erico. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981. p.26-28.
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7. CANDIDO,A Erico Verissimo de Trinta e Setenta. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981. p.40-51.
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"Os Brasileiros e a Literatura Latino-Americana" In: Novos Estudos –
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8. CARPEAUX, Otto Maria. Erico Verissimo e o público. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981. p.35-39.
9. CESAR, Gilhermino. O Romance Social de Erico Verissimo. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981. p.71-85.
10. CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981.
11. CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo e o mundo das personagens. In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981.
12. CHAVES, Flávio Loureiro. Realismo & Sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
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ROCHE, Jean. O estilo de Erico Verissimo de "O Continente" a "Incidente em Antares". In: CHAVES, Flávio Loureiro (Org.). O Contador de Histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981. p.194-214.
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Quassifico como excelente tudo que li neste post artcultural. Parabéns pela brilhante idéia de trazer ao público nossa cultura através de autores tão importantes quanto os que estão aqui mencionados.
ResponderExcluirQuanto a Érico Veríssimo devo dizer que senti falta do seu romance O tempo e o Vento. Tão importante que alguns de seus livros dessa série transformaram-se em mini séries da globo.
Abraço
Angela
PARABÉNS, UM EXCELENTE ESCRITO AONDE SE NOTA UM COMENTÁRIO DE GRANDE GABARITO. ADOREI, ARY
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