Página Maria Granzoto
Editora de Literatura Brasileira ArtCulturalBrasil
Arapongas - Paraná
Desenho
(José Antonio Jacob)
A nuvenzinha que no céu passou,
Lépida e alegre, sem nenhum rumor,
Num pé de vento foi e não voltou:
Era uma folha num jardim sem flor...
Virando a folha um sol no céu brilhou
E fez surgir um dia de esplendor;
Veio uma sombra e o dia se apagou:
Era um desenho num papel sem cor...
Por que será que meu rabisco leve,
Que traço em suavidade colorida,
Esvoaça fácil feito um sonho breve?
E tudo o que eu amei foi despedida...
E por que o meu destino não escreve
Uma história feliz na minha vida?
Introdução
Um soneto que se apresenta encharcado por outra arte: o desenho. São as habilidades inatas ao poeta José Antonio Jacob que faz com a palavra o que deseja. Ela lhe pertence e não há o que contestar. Neste sentido, o desenho é encarado tanto como processo quanto como resultado artístico. No primeiro caso, refere-se ao processo pelo qual uma ferramenta (em geral, um lápis, caneta ou pincel) e movendo-a, de forma a surgirem pontos, linhas e formas. O resultado deste processo (a imagem obtida), portanto, também pode ser chamada de desenho. O desenho envolve uma atitude do desenhista (o que poderia ser chamado de desígnio) em relação à realidade: o desenhista pode desejar imitar a sua realidade sensível, transformá-la ou criar uma nova realidade com características próprias. O desenho nem sempre é um fim em si. O termo é muitas vezes usado para se referir ao projeto ou esboço para um outro fim. Assim, o desenho pode significar a composição ou os elementos estruturais de uma obra, neste caso, o poema.
O título
Na língua espanhola existe a distinção entre as palavras diseño (que se refere à disciplina conhecida como design nos países lusófonos, ou ao projeto, de uma forma geral) e dibujo (que se refere ao desenho propriamente dito). Estudos etimológicos de Luis Vidal Negreiros Gomes indicam que também no português existiam essas nuances de significado, com as palavras: debuxo significava esboço ou desenho e que a palavra desenho tinha o sentido de projeto. Com o tempo o debuxo deixou de ser usada e o desenho mudou o significado, mas preservou algumas dos sentidos de projeto.
Atualmente a língua portuguesa incorporou a palavra design que comporta o sentido de desenho como projeto. O poema “Desenho” escrito pelo grande sonetista Jacob vem carregado de cores, como se fora uma pintura, embora haja um aspecto que diferencia o desenho da pintura é que, ao desenhar, um artista usa cores puras e não pode misturá-las antes da aplicação, enquanto na pintura, cores novas são geralmente criadas através de misturas. Ao realizarmos uma acurada leitura do mesmo, descobriremos nuances extraordinárias que jamais encontraremos em outro poema!
O primeiro quarteto
A nuvenzinha que no céu passou,
Lépida e alegre, sem nenhum rumor,
Num pé de vento foi e não voltou:
Era uma folha num jardim sem flor...
Antíteses, catacrese, metáforas! Mas, sobretudo, uma tempestade – um brainstorm – de sentimentos esvai-se pela mente, pelos poros, pelo infinito! A nuvenzinha é lépida e alegre, ágil tanto quanto uma criança, que adora desenhar! Ainda que garatujas, aos primeiros anos de vida (daí, talvez, o uso do diminutivo ). Mas há uma ênfase em “nenhum rumor”, que gera a antítese da alegria. Ninguém pode ser alegre sem ruídos, sem risos, sem a emissão de sons! E como não haver o rumor em um “pé-de-vento”? Catacrese no lugar exato! E com ele vamos nós. Todos. Sempre estamos indo e, um dia, não mais voltaremos. Seremos então a “folha num jardim sem flor...” Não consegui entender, até hoje, essa persistência do poeta em abordar jardins sem flores e vice-versa! Mas continuo tentando. Ah, se continuo!
O segundo quarteto
Virando a folha um sol no céu brilhou
E fez surgir um dia de esplendor;
Veio uma sombra e o dia se apagou:
Era um desenho num papel sem cor...
Um gerúndio inicia o verso, indicando um constante procurar. Agora não mais folha de árvore ou de flor inexistente, mas uma folha de livro? Do grande Livro da Vida? É nesse Livro que escrevemos, desenhamos, pintamos e podemos mudar a paisagem ao nosso gosto ou estado de espírito! Aí o sol brilha esplendorosamente para, em seguida, transformar-se em sombra. Sombra, não. Escuridão. Ou vazio? Como desenhar num papel sem cor? A composição pictórica expressa pelo desenho pode representar situações e realidades diversas: aquilo que o artista vê quando desenha, uma cena lembrada ou imaginada, uma realidade abstrata ou, no caso do desenho automático (proposto pelos surrealistas), pode vir a surgir com o movimento livre da mão do artista através do papel (ou de outra superfície). No processo da grafomania entóptica, em que os pontos são feitos nos locais das impurezas ou de variações de cor em uma folha de papel em branco, e as linhas são feitas então entre os pontos, superficialmente falando, o tema do desenho é o próprio papel ou a própria ausência da cor. Ausência. Vazio. Estas várias atitudes do poeta-desenhista em relação ao resultado do desenho manifestam-se através da técnica escolhida por ele, evidenciada pelo seu gesto. O gesto está profundamente relacionado à natureza dos movimentos da mão humana e à forma como a visão (ou o raciocínio visual, de uma forma geral) os influencia.
E mergulho nessa folha em busca do fundo ou do fundamento? Não o sei porque não há luz ! E bracejo em todas as direções em busca de um rumo ou de rumor, mas nada encontro! Nem mesmo sei aonde estou! Sumiu a textura do contexto e a nada vejo. Nada. Ausência plena! Apenas sei que não existe a ausência de profundidade!
O primeiro terceto
Por que será que meu rabisco leve,
Que traço em suavidade colorida,
Esvoaça fácil feito um sonho breve?
O poeta parece sugar o seu “rabisco” com grande eficiência e comunicar seu desconforto. Olha para o seu traçado de acordo com suas próprias regras numa ordem cósmica onde o tempo é percebido somente como dia e noite. Olha para contornos e bordas sem passear os olhos pelo que vê. A relação com esse desenho é de vital importância e quase uma questão de sobrevivência. Ele o vê, ele o faz com muita doçura, mas rapidamente desaparece. E isso pode ser uma combinação desconcertante.
É um domínio passageiro, lépido das suas ligações afetivas fortes com quem lhe é significativo. Eu diria que á a busca da exploração ainda mais ampla do seu mundo. Daquele mundo sonhado, porém não confirmado. O poema “Desenho” é uma manifestação de estado de espírito do poeta.
O último terceto
E tudo o que eu amei foi despedida...
E por que o meu destino não escreve
Uma história feliz na minha vida?
Há um caminho, só que, como foram mal sonhados ou mal desenhados, ou foi tolhido por outrem, busca-se alguém para sonhá-los conosco. No entanto, para quem acredita, o destino de cada um é imutável. Concluindo, deixo aqui um pensamento que li de certa feita : “O Destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?” (Mia Couto – Terra Sonâmbula. 2ª ed. Lisboa: Caminho, 1996, p. 217).
Últimas palavras
O desenho não é necessariamente sempre um fim em si mesmo, podendo vir a assumir uma função ou caracterizar-se como mediação para outro fim. É o que se deduz deste belo soneto de Jacob! O verdadeiro artista possui na alma o dom de absorver todas as Artes e transmutá-las, fundí-las, proporcionando ao atento leitor, meios para compreender ou não, tanto a realidade, quanto os sonhos. Lembro o dito popular: “Para quem sabe ler, um pingo é letra”! Apaixonei-me por esse “Desenho”, grande poeta e mestre Jacob “Rembrandt”!
Referências bibliográficas
• ARNHEIM, Rudolf; Arte e Percepção Visual; São Paulo: EDUSP, 1997.
• CHAVES, Dario; JUBRAN, Alexandre; Manual prático de desenho; São Paulo: Editora Tipo, 2002; ISBN 8588516160.
• DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo : Martins Fontes, 1997. ISBN 8533605838
• EDWARDS, Betty; Desenhando com o lado direito do cérebro; São Paulo: Ediouro, 2001; ISBN 8500007486
• FRUTIGER, Adrian. Sinais e Símbolos : Desenho, projeto e significado; São Paulo : Martins Fontes, 1999. ISBN 8533610998
• KANDINSKY, Wassily; Ponto e linha sobre o plano; São Paulo: Martins Fontes, 2001; ISBN 8533605781
• WONG, Wucius; Princípios de Forma e Desenho; São Paulo: Editora Martins Fontes, ISBN 8533608616
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Poesia Portuguesa
Novas atualizações a partir de agosto
Página bem interessante. Tenho feito isso, entremear desenho e poema. A arte sai por todos os poros e se apresenta de todas as maneiras. Convido a ir a Poema Vivo (http://poemavida.blogspot.com.br).
ResponderExcluirEliane F.C.Lima
"Apaixonei-me por esse “Desenho”, grande poeta e mestre Jacob “Rembrandt”!" Faço das palavras da professora Maria Granzoto minhas palavras.
ResponderExcluirTambém concordo que nos deslumbrantes sonetos do Jacob "descobriremos nuances extraordinárias que jamais encontraremos em outro poema!"
Essa série da poesia de José Antonio Jacob comentada por Maria Granzoto resgata a poesia brasileira, que por algumas décadas perdeu o sentimento do belo, e a coloca no lugar de onde nunca deveria ter saído. Acredito em nossa poesia, essa poesia requintada e sonora, repleta de efeitos próprios da arte poética, onde o poeta Jacob reina com absoluto mérito, com descobertas incríveis para o belo formato da poesia metrificada, que estava injustamente agonizando no meio poético brasileiro.
Para mim, Jacob com suas temáticas e descobertas de variações de palavras e termos, usando a beleza da idéia e a simplicidade da palavra, é o Pai dessa nova poesia brasileira, e a ele rendo minha homenagem.
Elza Valéria
Rio de Janeiro
Venho parabenizar Art Cultural Brasil pela excelência de suas matérias. O José Antonio Jacob sob a ótica de Maria Granzoto torna-se ainda mais relevante na importância da Poesia Brasileira. Os detalhes que Jacob consegue colocar na sua poesia, entre o cuidado de lidar com palavras, o colocam em evidente patamar de grande mestre da poesia da atualidade.
ResponderExcluirOntem tive a oportunidade de ler o soneto "Florzinha" desse poeta único, uma beleza rara. Com que facilidade José Antonio Jacob se comunica com seus leitores, através de uma póética simples e maravilhosamente bonita, além de verdadeira.
Jacob é o poeta que veio resgatar a beleza da nossa poesia. Com toda certeza vai se imortalizar entre os maiores da língua portuguesa.
Augusto - Curitiba