Visite nosso faceArtCulturalBrasil

UMA CIDADE SEM MEMÓRIA CULTURAL É UMA CIDADE SEM FUTURO HISTÓRICO

Coelho Neto


Caxias - MA
1864-1934
"Ser mãe é padecer num paraíso!"
Fundador da Cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras. Recebeu os Acadêmicos Osório Duque-Estrada, Mário de Alencar e Paulo Barreto.
Coelho Neto (Henrique Maximiano C. N.), romancista, crítico e teatrólogo, nasceu em Caxias, MA, em 21 de fevereiro de 1864, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de novembro de 1934.
Foram seus pais Antônio da Fonseca Coelho, português, e Ana Silvestre Coelho, índia. Tinha seis anos quando seus pais se transferiram para o Rio. Estudou os preparatórios no Externato do Colégio Pedro II. Depois tentou os estudos de Medicina, mas logo desistiu do curso. Em 1883 matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Seu espírito revoltado encontrou ali ambiente para expansões, e ele se viu envolvido num movimento dos estudantes contra um professor. Prevendo represálias, transferiu-se para Recife, onde fez o 1º. ano de Direito, tendo Tobias Barreto como o principal mestre. Regressando a São Paulo, entregou-se às idéias abolicionistas e republicanas, numa atitude que o incompatibilizou com certos mestres conservadores. Não concluiu o curso jurídico em 1885, e transferiu-se para o Rio. Fez parte do grupo de Olavo Bilac, Luís Murat, Guimarães Passos e Paula Ney e a história dessa geração apareceria no seu romance A Conquista (1899). Tornou-se companheiro assíduo de José do Patrocínio, na campanha abolicionista. Ingressou na Gazeta da Tarde, passando depois para a Cidade do Rio, onde chegou a exercer o cargo de secretário. Por essa época começou a publicar seus trabalhos literários.
Em 1890, casou-se com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Olympio Brandão e do casamento teve 14 filhos. Foi nomeado para o cargo de secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, Diretor dos Negócios do Estado. Em 1892, foi nomeado professor de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes e, mais tarde, professor de Literatura do Ginásio Pedro II. Em 1910, foi nomeado professor de História do Teatro e Literatura Dramática da Escola de Arte Dramática, sendo logo depois diretor do estabelecimento.
Eleito deputado federal pelo Maranhão, em 1909, foi reeleito em 1917. Foi também secretário-geral da Liga de Defesa Nacional e membro do Conselho Consultivo do Theatro Municipal.
Além de exercer vários cargos, Coelho Neto multiplicava a sua atividade em revistas e jornais, no Rio e em outras cidades. Além de assinar trabalhos com seu próprio nome, escrevia sob inúmeros pseudônimos, entre outros: Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manés.
Cultivou praticamente todos os gêneros literários,deixou uma obra extensa e foi, por muitos anos, o escritor mais lido do Brasil. Apesar dos ataques que sofreu por parte de gerações mais recentes, sua presença na literatura brasileira ficou devidamente marcada. Em 1928, foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros, num concurso realizado pelo O Malho. João Neves da Fontoura, no discurso de posse, traçou-lhe o justo perfil:
"As duas grandes forças da obra de Coelho Neto residem na imaginação e no poder verbal. [...] Havia no seu cérebro, como nos teatros modernos, palcos móveis para as mutações da mágica. É o exemplo único de repentista da prosa. [...] Dotado de um dinamismo muito raro, Neto foi um idólatra da forma."

( Academia Brasileira de Letras http://www.academia.org.br/ )
Ser Mãe

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!


O "FILÓSOFO"

Cesário, debruçado sobre um grande atlas, aberto em cima da mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela carta, resmoneando. Sentindo os passos de Jorge, levantou a cabeça:

- Estamos independentes, hem? Foram-se as gralhas? Pois, meu amigo, grandes e verdadeiras foram as palavras que eu aqui te disse: Tenho os ouvidos atordoados ainda e atenta bem a ver se não escutas, de quando em quando, o eco abominável das gargalhadas daquela partênia. Não sentes? São de assombrar, palavra! Precisamos recitar aqui dentro a Oração de Demóstenes ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente. Dize-me: tens por aí alguma carta do mundo antigo? Ando a refazer o roteiro dos Árias, preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida senão coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos vis, sem história, sem tradição, sem passado colônias inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e pela crueza dos homens e dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí nos teus cabedais alguma coisa. Se não tens, dize de uma vez para que eu desça. É possível que encontre na Biblioteca o que preciso. Ainda assim prefiro que procures porque, como é coisa preciosa e útil, decerto não será fácil achar nas estantes da Alexandria indígena.

E curvou-se de novo, mas, sempre passeando o dedo pela carta, interpelou o amigo:

- E a Cegonha, hem? Não foi. Já a vi pensativa e murcha ali na varanda a buscar sonhos no céu com os óculos radiantes. Mulher forte!

- Detesta as Moretti. Julga-as como eu.

- Ah! moralidade tem ela, isso tem. É mulher para exemplo. Deviam citá-la num Tesouro das meninas como modelo de virtudes, a fealdade inclusive, que é a maior das virtudes, porque repele o inimigo. Mas dize, como há de ser? E o roteiro?

- Que queres, não tenho livro que te sirva.

- Diabo! E eu que tencionava começar hoje a minha obra. É verdade... E se eu começasse pelo segundo capítulo? Há exemplos. Eu, que aqui estou, nasci por um braço. Há quem tenha nascido pelos pés: o Cosme, por exemplo, deve ter nascido assim. Hem? que dizes? Se eu começasse pelo segundo capítulo? E aprumando-se: Mas fala, homem... Estás mais triste do que a irlandesa. Fala e trata de acender o gás ou de fazer com que o acendam, porque já não vejo nada na Ásia: tudo é sombra. E o Mommsen? Tens aí o Mommsen?

A sala clareou de jacto e a luz forte do gás, esbatendo-se no jardim, como que ainda mais lhe adensou as sombras crepusculares. Cesário passou a mão pela calva e, espreguiçando-se, bocejou estrondosamente:

- Diabo! Estou com uma famosa courbature. Dobrou-se para trás, com as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu o braço para a chama loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais nada. Entanto há na sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat... a avareza, por exemplo... que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até o mais fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma clarabóia. E ainda há luz lá fora.

Lançou o olhar ao exterior e, voltando-se:

- Dize, que tal achas o pensamento que um dia procurei apertar em um soneto? e avançando com grandes gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os olhos para o céu de opala: Ouve lá, não está em metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A cena do soneto simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol! e atirou o braço esticado para o teto. Expira o sol... e Deus!... arma no céu um catafalco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio. Que te parece? indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem? Estou aqui a falar-te como Apuléu aos bárbaros. Que tens? Jorge caminhava ao longo da sala, de mãos para as costas, parando, de instante a instante, para ouvir o "filósofo". Que tens?

- Estou aborrecido, contrariado.

- Com a saída da menina? Não te preocupes. Descansa. Não lhe pegam os vícios das outras. Lembra-te da Marina do mestre. Onde é que Péricles a encontra? num alcouce infame e retira-a pura, como se retira o lótus d’água pútrida. Não te preocupes. Vamos cuidar de atravessar estas horas de sombra a rir. Queres que te diga? se algum dia eu procurasse meus filhos haviam de conhecer tudo filhos e filhas, tudo! A menina é sisuda, e, quando ela chegar, entrega-a à Cegonha para um grande banho moral. Não te preocupes. Anda daí. Olha a tarde que vai lá fora. Aposto que a Cegonha anda a gozá-la. Vem daí. E voltando-se de golpe: Afinal nem julgaste o meu pensamento. Que tal?

Jorge encostou-se à mesa e, brincando com a espátula de marfim, enfezado, deixando cair lentamente as palavras, disse:

- Nada me irrita tanto como essa amizade de Sara. Tenho insistido com ela para que vá, pouco a pouco, evitando tais relações... mas qual! É pior. Não a contrario, bem sabes; faço-lhe todas as vontades, basta, porém, que demonstre que não me agrada isto ou aquilo para que ela insista caprichosamente. E se me oponho, são maus modos, choros, não quer comer. Afinal parece que lhe devo merecer alguma coisa.

- Mas vem cá, não te aflijas, isso não tem valor. Não consintas mais, aí tens. É dizer francamente, na cara, quando elas aqui tornarem com convites: Não! não! e não! És pai, estás no teu direito. E passando-lhe um braço pelo ombro: Mas vem cá e sê franco: Tu o que sentes é falta da menina, e é natural: criaste-a. Mas, meu amigo, isso é bom em parte para que te vás acostumando porque, afinal, ela não há de ficar solteira toda a vida. E quando casar?

Houve uma pausa. Jorge afastou-se da mesa e, passando a mão pelo rosto, estacou no meio da sala, a olhar a panóplia que rebrilhava à luz. Voltou-se por fim dizendo, com resignação:

- Ah! bem, quando casar!... Mas vê-la em companhia de tal gente!? - Enfureceu-se: - E não sei que mais hei de fazer para que essas senhoras compreendam que não as tolero: evito-as, pouco lhes falo quando as encontro. Ainda hoje, viste? passaram aqui o dia e eu deixei-me estar a ler. Não sei mais que hei de fazer. - E caminhando, a sacudir os braços: - Não as aturo, fazem-me mal. No Catete, enquanto lá estivemos, nunca as visitei e elas não me saíam de casa perturbando-me o trabalho e a paz. Deves lembrar-te?

Cesário sentara-se num pliant e acompanhava com o olhar os passos do amigo. De repente, frenético, estrincando os dedos das mãos, bramiu:

- Pois, meu caro, com tal gente nada de eufemismos: não compreendem? é dizer-lhes a coisa à bruta. - Forcejou nos dois braços e, escorregando pelo linho, levantou-se pachorrento: - É dizer-lhe francamente.

Inocêncio apareceu à porta e, antes que falasse, Jorge despediu-o com um gesto:

- Já vamos; e para Cesário:

- É o que ainda faço, palavra de honra. E o que elas fazem com essa senhora...

- Com a Cegonha? Ora! ela não dá por isso. É fria, não tem nervos. O que ela quer é que a deixem em paz. Pensas que se zanga? Pois sim!... E, travando-lhe do braço, berrou-lhe ao ouvido: Não tem nervos! E noutro tom: Vamos jantar... Vamos, e pelo jardim, porque a irlandesa deve andar por lá extasiada, e assim, depois de nos deliciarmos com um pouco de sublime, vamos preparados para mirar-lhe os ângulos da cara macerada.

À porta Cesário estacou subitamente, apontando para o jardim:

- Olha, que te dizia eu? Olha lá... não vês aquela sombra esguia? Que te dizia eu? E, ganhando o jardim, o "filósofo" levantou os braços para o céu límpido: Mas admira! admira, homem! Há lá céus que se comparem a este? e luares...? Qual Nápoles, qual carapuça! Céu é isto! E como a irlandesa viesse perto, Cesário saudou-a: Good evening, Miss!... E ela, de longe, com um risinho, correspondeu: Good evening!

E tomando a frente, subiu as escadas, rija, ereta como um autômato. Cesário, de braço com o amigo, sussurrava:

- Olha bem... Vai ali um admirável tipo étnico. Dize se por esta mulher um Spencer não reconstituiria a raça dessa grande mina de John Bull, como os naturalistas, com um osso, reconstroem o arcabouço de uma das bestas colossais das eras pródigas, anteriores ao banho universal. Mas olha bem. Ela vai ali para o jantar com a mesma serenidade fria com que os homens rijos do seu país vão para os gelos do pólo ou para os cálidos sertões da Núbia.

Miss chegara à varanda e, voltando-se, lançou os olhos ao céu:

- Esplêndida noite!

Admirável, Miss!

E, já no alto, de mãos aos flancos, o olhar erguido: Lembra-se, Miss? As lindas frases do idílio entre Lourenço e a filha do Judeu, no Mercador de Veneza, quando, olhando o luar, entram a recordar noites de amores?

- Sim, sim...

E Mamoaselle risonha, inflando as bochechas, com uma voz máscula e cadente, recitou:

The moon shines bright: in such a night as this...

Mas Cesário interrompeu-a delirante:

- Isso! isso! Grande memória, Miss! É fenomenal! Estupenda memória! E, como em monólogo: The moon shines bright... Exatamente. Mas é admirável! Jorge recostara-se à balaustrada. Miss, de olhos altos, contemplava o luar e Cesário, em pequenos passeios, balançando os braços, repetia baixinho: The moon shines... Súbito, porém, parando diante da porta da sala iluminada, lembrou: E o jantar? Estamos aqui em hipnose e a sopa esfriando. Entrando, voltou-se exclamando: Mas que memória, Miss!

Mamoaselle sorria.

Folhagens e flores em vasos alegravam a mesa, arranjada caprichosamente como para um festim, debaixo do grande lustre, o "alampadário" como dizia o filósofo que, de vez em vez, em assomos de entusiasmo, lamentava ter nascido em tempos tão vis, sem arte, sem bravura, sem cavalheirismo e, gesticulando para o bronze, saudava-o como um representante da arte pura, antes da invasão do mercantilismo na estética.

Jorge e Cesário colocaram-se ao lado de Mamoaselle que se sentara à cabeceira.

O copeiro serviu a sopa e, à primeira colherada, Cesário formulou a receita de uma futura alimentação reconstituinte e breve, tendo por base a peptona. E explicou:

- O homem é o animal por excelência, o rei da fauna, culminando na escala zoológica. É o ser que fala e ri, o único que se veste, e corta as unhas, os calos e o cabelo, reconhece as dívidas e casa-se. É o depositário do espírito de Deus, etc., etc. E esse ente superior, apesar de milênios de cultura, vive ainda como o troglodita nutrindo-se de carniça... só porque tem dentes, remanescentes da brutalidade primitiva. Mas, que diabo! assim como já não nos servimos das unhas nas lutas, tratando-as como enfeites dos dedos, que o manicuro enforma e pule, por que não havemos de fazer o mesmo aos dentes, conservando-os apenas como ornamentos? Há por aí quem os tenha encastoados em ouro, com brilhantes... O homem, a princípio, caçou para comer, como o leão e o urso, e espostejava vorazmente a presa, devorando-lhe os tassalhos crus. Com o fogo inventou o assado e toda a complicada culinária, causa da dispepsia. Hoje, começa a preocupar-se com a alimentação sintética, podendo trazer no bolso uma caixa de pílulas para nutrição de um ano e um frasco de essência fluida de uva para emborrachar-se às gotas.

Miss ouvia de olhos baixos, enlevada nas palavras sonoras do sábio suspendendo, às vezes, a colherada que levava à boca. Jorge interveio:

- Cesário, vê se concilias a palestra com a sopa, que está esfriando.

O "filósofo" baixou a cabeça e, durante um momento, sorveu gorgulhantemente. Depois, passando o guardanapo pelas barbas, referiu-se a Sarita:

- Se ela aqui estivesse já nos tínhamos travado em alguma discussão. Faz falta.

Mamoaselle correu com os olhos rapidamente de um a outro. Jorge tamborilava com os dedos na borda da mesa, distraído. Notando que as suas palavras caíam na indiferença do amigo, como folhas secas num chão de areia, o "filósofo" calou-se, mas no momento de lhe servirem o peixe, resmungou, amuado:

- E dizer que isto é irmão da Afrodite.

Partiu o pão, trincou uma lasca e dirigiu-se a Mamoaselle.

- E eu posso falar, porque tenho um estômago de ferro. Como tutu de feijão com lingüiça à meia-noite, deito-me e durmo como um abade. Não sou homem de resguardos aqui como este senhor, que anda sempre com bicarbonatos e elixires eupépticos e está aí que é uma lástima. Tudo isso, esses enjôos pessimistas, essa melancolia, essas rugas, esses cabelos brancos, precoces, tudo isso é estômago.

Jorge contestou:

- Enganas-te. Não tenho tão mau estômago assim. O que isto é é obra do tempo e do que ele me tem trazido. São quarenta e seis anos puxados.

Mamoaselle ponderou:

- Não é muito, senhór doctór. Na Europa um homem de quarenta e seis anos é moço. E o senhor doctór tem-se em conta de velho?

- Se tenho...!

Cesário interveio:

- Pois não vê? É a própria decrepitude, a anciania. É já um antepassado. Estás aí a pedir bordão e curatela. Velho...

De ímpeto aprumou-se carrancudo, repeliu o talher e levantando as mãos ambas à cabeça exclamou:

- E eu? E eu então? Eu que nem mais um fio de cabelo tenho na cabeça, porque as farripas que me restam refugiaram-se na zona do pescoço, como vês? E puxou as mechas com fúria. E, todavia, não tenho um cabelo branco, nem um fio. Voltou-se arrebatadamente para Mamoaselle: Conheci um rapaz, aliás um atleta, que, aos vinte anos, tinha a cabeça com um capulho de algodão. Isso de cabelos brancos não quer dizer nada: é questão de couro, como a vegetação depende em muito do terreno. A velhice não está nos cabelos, mas no interior. Tu, por exemplo, Jorge: tens todas as faculdades íntegras, tens estro, entusiasmo, ideal, és são. Digeres bem, dormes oito horas a fio, pensas com idéias próprias, que mais? Velhos caducos, monstros cacoquimos são esses cretinos que por aí andam como trambolhos entulhando a vida com ignorância e vícios. Esses sim! Chama a um de tais, pede-lhe uma noção. Responderá com ornejo e coice. Velhice... velhice...! É como a tal história das terras cansadas. A Europa dá pão e vinha, linho e azeite desde os primeiros dias do mundo já não falo da Ásia veneranda e não há lá terras gastas. E aqui, com uns séculos de café, açúcar e mandioca já os lavradores queixam-se de exaustação do solo e pedem florestas virgens para o machado e o fogo. Preguiça é que é! Aqui estou eu, à beira dos cinqüenta... Pois tenho uma memória de anjo, menos para datas. Para datas sou uma zebra!

O copeiro entrava com uma terrina quando a campainha do telefone retiniu vivamente.

- Deixa isso aí. Vai atender, disse-lhe Jorge. E os três imobilizaram-se, à escuta.

Pelas afirmativas do criado: "Sim senhora. Estão jantando. Sim, senhora. Já foi", Mamoaselle concluiu:

- É Miss.

Jorge pôs a cabeça a fito e, mal o copeiro reapareceu risonho, perguntou:

- Quem é?

- É D. Sara que está pedindo a roupa.

- Já lha mandaram?

- Já sim, senhor. O jardineiro saiu daqui ind’agorinha mesmo.

O jantar foi rápido e só Cesário falou sobre a vanidade da ciência. Mamoaselle, recolhida, respondeu apenas a uma pergunta do "filósofo" à questão da Irlanda, aplaudindo Gladstone, "o apóstolo venerado da liberdade de Erin".

O café foi servido na varanda, ao luar. Cesário passeava de um lado para outro, entourido. Jorge, em um dos bancos, fumava, d’olhos no céu. Miss deixara-se ficar na sala, embalando-se em uma cadeira, divertindo-se com as travessuras de Diana que saltava com uma bola de papel, abocanhando-a, correndo assanhada e trêfega, a rosnar. Bá, arrastando os passos, fechava os armários, discutindo com os criados e, no silêncio diáfano do luar, vibravam silvos de locomotivas.

- Ora aí tens a vida disse Cesário. O dia de hoje, se houvesse ponto na eternidade, devia ser marcado com a nota de falta para nós ambos, porque afinal não aproveitamos um só minuto em obra de espírito. Um dia que o pio Antonino consideraria perdido. Primeiro a beleza radiante da manhã, que inutilizou todas as minhas forças cerebrais, porque eu sou incapaz de conceber diante do maravilhoso extasio-me e o meu êxtase é assim como uma beatitude besta. Linda manhã! E, por uma reminiscência estranha, caminhando de mãos nos bolsos, recitou baixinho: The moon shines bright... Logo, porém, abandonando o poeta, repetiu enlevado: Linda manhã! Depois a estrondosa invasão das mulheres. E, escarafunchado nervosamente a orelha, perguntou frenético: Ó Jorge, não te parece que o mundo seria um paraíso se Deus, inspirado pelo diabo, não houvesse feito a mulher? Já sei que vens com a eterna cantiga da geração. Mas, que diabo! as árvores são todas de um sexo e, para feminino, aí está a terra venerável, perenemente fecunda. Nós faríamos como as árvores. À medida que fôssemos envelhecendo, em vez dessa hera ignóbil dos cabelos brancos, as nossas cabeças cobrir-se-iam de sementes, que o sol fecundaria como fecunda as outras do honesto mundo vegetal. No outono sacudiríamos a guedelha e a Terra encarregar-se-ia de criar os epígonos que, na primavera, sairiam das moitas dizendo "Papai! Mamãe!" e beijando a poeira maternal, como fez o romano.

Seríamos senhores absolutos do planeta, habitaríamos ainda o Éden, sem preocupações de senhorio e venda, alfaiate e botica, cercados de flores sem espinhos e de animais sem ferocidade e o chão sagrado não se teria tingido clamorosamente com o sangue do fratricídio. Não haveria Vaidade e a Discórdia, mãe das guerras, não acharia onde pousar. Seria a delícia, a bem-aveturança. Todo o mal da Vida é de origem feminina. Está aí o testemunho da História. A tal criação de Eva foi uma espiga e tanto...! Que diabo! houve uma ilha só de mulheres: Lemos, e resistiu; por que não há de ser o mundo só dos homens? Se o Criador não fosse tão orgulhoso emendaria a sua obra eliminando Eva, não te parece?

Jorge falou baixinho como se não quisesse interromper o silêncio da noite:

- Sim... mas não haveria a bondade. O homem é egoísta, essencialmente egoísta, sufoca todos os sentimentos em favor do seu "eu". É a mulher quem o faz amoroso, meigo, resignado, emprestando-lhe ternura, piedade e crença.

- Egoísta! Egoísta, o homem! bradou Cesário. Em que é que somos egoístas, nós que desistimos de tudo em favor da mulher? Em que é que somos egoístas?

- Em tudo, Cesário afirmou Jorge pachorrentamente.

- Pelo amor de Deus!... E que é o ciúme na mulher senão a explosão do egoísmo da carne? E o amor materno, que é senão um egoísmo avaro, a manutenção eterna da posse da criatura que a mulher prende, a princípio, ao colo, depois nos braços, mais tarde retém com afagos quando percebe o despontar do instinto de independência e, finalmente e é a sogra! roncou soturno, a fúria trágica quando descobre que uma força superior lhe arrebata o escravo do coração? Que é a bênção senão uma prova de eterna submissão do filho? Egoísta, o homem? em quê? História!

Jorge ergueu-se com lentidão e, debruçando-se à balaustrada, concluiu:

- O teu caso já foi descrito por Lafontaine. E recitou baixinho:

Certain renard gascon d’autres disent normand,

Mourant presque de faim, vit au haut d’un treille

Des raisins...

Mas o filósofo atalhou-o esbravejando:

- Estás enganado! Eu é que não tenho querido. Conheço o perigo e evito-o. Estás enganado. Apesar de toda a minha austeridade, já achei uma dama que solicitou a minha presença em certo sítio misterioso, lá para as bandas da Tijuca, perdida por mim, por me ter ouvido, uma noite, em casa não sei de quem, discutir a Revolução Francesa com um bacharel analfabeto.

- E então?!

- Então? Eu não freqüento caramanchéis, à noite. Prefiro a robustez dos meus pulmões a todos os beijos das Circes que por aí andam. Demais, achei desaforada a proposta. A mulher não queria o homem, não se apaixonara pelo homem, senão pelas palavras do homem. Assim, pois, em vez de levar para lá o meu corpo, mandei-lhe de presente uma história de França, onde ela podia achar, e com a fulguração do estilo, tudo quando eu repetira combatendo o jurista que cortejava uma dama à custa dos heróis da campanha santa.

Não fui e a senhora, para os que têm olhos libidinosos, passa por ser uma das maravilhas do grande mundo. Não sou um despeitado, como pensas sou um homem de programa. E também não aborreço a mulher como criatura, não! Um corpo de mulher bem feito e esbelto encanta, não há dúvida, mas deixem-na ficar como ornato, levem toda essa graça divina para um pedestal e eu serei o primeiro entre os seus admiradores. Como esposa é que não, isso não, porque com o seu espírito fútil vai, pouco a pouco, eliminando a energia do homem, conseguindo, as mais das vezes, torná-lo escravo dos seus nervos e dos seus sorrisos. Esposa é que não! Olha para a história, meu amigo, e verás a mulher à frente de todas as calamidades. Acordes vieram interromper a facúndia do filósofo: Que é isso, Jorge?

- Chopin.

- É a Cegonha. Mulher horrenda! mas grande artista. Grande artista! Fossem todas como ela: só espírito. Porque afinal essa pobre Miss não tem outra coisa senão espírito, não te parece? Essa, garanto eu, não pecará jamais pela carne por falta de matéria-prima. Horrenda, mas grande espírito, não há dúvida. E o nocturno sentimental soava docemente no silêncio do luar. Súbito Cesário levantou-se:

- Ficas aí? Eu desço, vou traçar o plano do livro. Estou em veia de trabalho. Vens?

- Não, fico ainda. Está fresco aqui.

- Então até logo. E recitando: The moon shines bright... foi-se lentamente pela escada.

(Inverno em flor, capítulo V, in Obra seleta, vol. I, pp. 314-325.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário