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UMA CIDADE SEM MEMÓRIA CULTURAL É UMA CIDADE SEM FUTURO HISTÓRICO

Afronta Impiedosa (comentado)

Página Maria Granzoto
Editora de Literatura ArtCulturalBrasil
Arapongas - Paraná


Afronta Impiedosa
(José Antonio Jacob)

Em cada rua há um vendedor de flores
E anda distante o Dia de Finados;
Casais se beijam murmurando amores,
Também não é Dia dos Namorados.

Essa cidade tem muros dourados,
Por onde passam brisas sem rumores
E nos salões de imperiais sobrados
Divertem-se os fidalgos sem pudores.

E o céu é tão azul que dói na vista,
O mar parece capa de revista
E ao longe nos acena um iate à vela...

E o que mais nos afronta e desiguala
É o luxo se exibindo na novela
E essa pobreza muda em nossa sala.


Introdução

De há muito ando sedenta por um mergulho nos sonetos do grande poeta José Antonio de Souza Jacob, quer seja para melhor aprofundamento nas reflexões sobre a existência da vida em todas as suas variáveis, quer seja para escancarar o grito contido e que necessita ser expirado diante de um mundo tão desigual, tão falso e de tanta maldade, essas ervas daninhas que brotam continuamente no coração de várias pessoas e não há veneno que as erradique!

O título

Por si, o título diz tudo! Afronta-se desde a Constituição Federal até artigos de jornal, peças teatrais, SENTIMENTOS, atos religiosos e tantos outros aspectos da vida humana, impossíveis de serem enumerados. Neste caso, até cego “vê”! São sempre estabelecidas duas visões sobre quem seriam os miseráveis na sociedade. Há uma separação entre ladrões e homens honestos, endinheirados e pobres, trabalhadores e usurpadores. E tudo de modo desumano (se é que pode haver humanismo numa afronta...)! Doa a quem doer! Quem pode mais, chora menos.

O primeiro quarteto

Em cada rua há um vendedor de flores
E anda distante o Dia de Finados;
Casais se beijam murmurando amores,
Também não é Dia dos Namorados.

Desconfia amigo! Permitam-me citar Jean Baptiste Debret: “Tudo assenta, pois, neste país, no escravo negro; na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade, o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda senhor” Aqui, nesta Pátria Amada, “todo dia é dia, toda hora é hora de pensar que este mundo é seu”: de vender flores, quaisquer sejam os motivos; de promoções das mais inusitadas, pensadas e ilustradas nas formas mais inimagináveis! Na prancha 6, “Vendedor de Flores à Porta de uma Igreja, no Domingo”, Debret enfatiza que aquela era uma cena real. Ele descreve como um criado de casa rica, parado à porta de uma igreja no domingo, vende flores em benefício do patrão. Então, poeta Jacob! Estaríamos nós ensandecidos? Na bandeja que leva na outra mão o escravo vende, por conta própria, pedaços de côco. Nessa afirmação de ser a prancha uma cena real, fica-nos uma pergunta: até onde eram reais todas as outras cenas pintadas e descritas por Debret? Por que esta em particular ele afirmou ser uma “cena real”? E pensar mais além: até que ponto as fontes imagéticas podem servir ao historiador para capturar um fragmento de realidade não mais ao alcance da memória?



Possivelmente, para essas inquietações não existam respostas satisfatórias. Contudo, podemos partir do princípio de que reais ou apenas factuais, deixando-se ver apenas por uma realidade local e individualizada, as cenas pintadas por Rugendas e por Debret, confirmadas por meio de pesquisas em inventários, testamentos, entre outros documentos, transformam-se em importantes aliadas para os historiadores da atualidade, quando analisadas com olhar investigativo e inquisidor.

O segundo quarteto

Essa cidade tem muros dourados,
Por onde passam brisas sem rumores
E nos salões de imperiais sobrados
Divertem-se os fidalgos sem pudores.

Herança de um passado nem tão distante! Ao observar os desenhos realizados por Debret e Rugendas, percebe-se que os negros– escravos e libertos – são os protagonistas de grande parte das cenas retratas pelos artistas ao reproduzirem o ambiente do trabalho e da rua. Possivelmente, a explicação a respeito da quantidade de desenhos retratando os negros possa ser entendida por uma fala de Rugendas na ocasião de sua primeira estadia no Brasil: “os hábitos sociais das classes elevadas não fornecem ao pintor maior número de traços característicos que os comuns às grandes cidades da Europa, por outro lado, é o artista fartamente compensado pela diversidade barulhenta das classes inferiores”. Notoriamente, era o exótico que inspirava os artistas estrangeiros a retratar o Brasil da primeira metade do século XIX. Newton Carneiro observou, inclusive, que o problema do negro impressionava e comovia a Rugendas. É o que tece o poeta Jacob em seus versos! Saiamos às ruas, andemos, observemos... Não temos mais escravos, ora essa! As filas de hoje não são sinais de poder... Antigamente, os negros eram os últimos da fila quando o senhorio saia com sua prole. As filas de hoje não discriminam... Velhos, jovens, trabalhadores, desempregados, doentes e tantos outros estão na mesma fila! Quanta igualdade! A única diferença é a ordem de chegada...

O primeiro terceto

E o céu é tão azul que dói na vista,
O mar parece capa de revista
E ao longe nos acena um iate à vela...

O cenário permanece o mesmo. O céu não mudou. O mar não mudou. Só a caravela mudou um pouquinho... Mudou de nome, tem mais conforto e outra finalidade... É claro que a intenção é realizar uma viagem de iate, imagética, na tentativa de mapear as atividades exercidas pelos negros fora das grandes fazendas de engenho e de café, exercendo funções diversificadas e, até mesmo, que exigiam qualificação e aprendizado. Nosso foco são as imagens e o soneto que as acompanham. As imagens seguidas dos textos oferecem-nos muito mais do que registros iconográficos e relatos descritivos do Brasil, suas paisagens e seus habitantes. Mais do que isso, elas evidenciam as relações sociais estabelecidas na Colônia portuguesa, a mobilidade dos negros em pleno sistema escravagista e as especificidades da escravidão no Brasil do período atual. E que fique muito claro que “negro”, aqui no texto, nada tem a ver com a cor da pele!

O último terceto

E o que mais nos afronta e desiguala
É o luxo se exibindo na novela
E essa pobreza muda em nossa sala.




Há um velho axioma segundo o qual toda política é essencialmente municipal e que todo governante deve pensar globalmente, mas atuar localmente. Embora seja uma premissa antiga, duvido que a classe política tenha pensado na lógica desse sistema que insere harmonia no gerenciamento do espaço e das pessoas, qualquer seja a classe social de onde provenha como balizador de qualidade de vida. Mas continuamos sendo afrontados, classificados pela tipagem exterior, pelos bens que possuímos ou não, enfim, pela “casca” que vestimos! A meu juízo a classe política peca duplamente ao se eximir da responsabilidade global e não respeitar o espaço local, o homem em sua plenitude, a sua família, o seu caráter, preferindo focalizar suas ações nos objetivos eleitorais do próximo pleito. Para ela nós somos apenas eleitores, contribuintes ou habitantes, mas nunca seres humanos em busca da cidadania plena. Que “Afronta Impiedosa”, poeta Jacob!

Maria Granzoto



Referências bibliográficas
 
ANASTASIA, Carla Maria J.; PAIVA, Eduardo F. (orgs.). OTrabalho Mestiço: maneiras de pensar e formas de viver. SéculosXVI a XIX. São Paulo: Annablume editora, 2002.

BELLUZZO, Ana Maria. A propósito do Brasil dos Viajantes.

REVISTA USP, SÃO PAULO (30): 46 -57, JUNHO /AGOSTO 1996. “O Brasil dos Viajantes”.

BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos Viajantes. SãoPaulo, Edição Metalivros/Fundação Odebrecht, l994 ,3 vol.

CARNEIRO, Newton. Rugendas no Brasil. Rio de Janeiro:Kosmos, [19- ]. p. 16

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica aoBrasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: Livraria MartinsEditora, 1979.

.DIENER, Pablo. O catálogo fundamentado da obra de J. M.Rugendas e algumas idéias para a interpretação de seus trabalhossobre o Brasil.

REVISTA USP, SÃO PAULO (30): 46 -57,JUNHO / AGOSTO 1996. “O Brasil dos Viajantes”.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

PAIVA, Eduardo França. Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo Mundo. In: PAIVA,Eduardo França & ANASTASIA,

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do “outro”: Jean-Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816-1831).

Revista eletrônica “Novo mundo-mundos novos”. Endereço eletrônico: http://nuevomundo.revues.org/document3669.html.

RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca Através do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979.


Sugestões

Realização


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Poesia Portuguesa
Camões I



Atenciosamente,

Lineu Roberto de Moura
Presidente

Um comentário:

  1. Querida Rosana Grassani!Quanta sensibilidade em sua alma! Somente os corações puros e que conseguem ver além das palavras, escrevem como você! Jose Antonio Jacob é isso que você diz e muito mais! Minas, em especial Juiz de Fora, deveria orgulhar-se das grandiosas e inimitáveis mentes culturais que possui! Mas, infelizmente, apesar de tanta cultura ali embutida, parece que alguns governantes estão com as mentes embotadas! Infelizmente, pelo País inteiro! Curitiba - capital do PR - tenho dois filhos que aí residem e quando os visito, entendo e sei do friozinho a que se refere...E agora é verão, certo? Ajude-nos, como sempre o fez, a divulgar este grande poeta mineiro! Quem sabe alguns corações se aqueçam! Um grande abraço! Maria Granzoto.

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