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UMA CIDADE SEM MEMÓRIA CULTURAL É UMA CIDADE SEM FUTURO HISTÓRICO

Cícero Sandroni


São Paulo - SP
1935

Sexto ocupante da Cadeira nº 6, eleito PRESIDENTE DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS em 25 de setembro de 2003, na sucessão de Raimundo Faoro e recebido em 24 de novembro de 2003 pelo Acadêmico Candido Mendes de Almeida. Foi reeleito, no dia 11 de dezembro de 2008, por unanimidade, para um segundo mandato como Presidente da Academia Brasileira de Letras.

Cícero Augusto Ribeiro Sandroni nasceu na cidade de São Paulo, a 26 de fevereiro de 1935, filho de Ranieri Sandroni e Alzira Ribeiro Sandroni (ambos nascidos em Guaxupé, Minas Gerais).

Fez os estudos primários e parte do ginasial na capital paulista. Com a transferência de sua família para o Rio de Janeiro, em 1946, aqui concluiu os estudos secundários. Cursou a faculdade de Jornalismo (hoje de Comunicação) da Pontifícia Universidade Católica e a EBAP - Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, onde foi bolsista.

Em 1954 fez os primeiros estágios em redações de jornais, inicialmente na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda e em seguida no Correio da Manhã, sob a direção de Antônio Callado e Luiz Alberto Bahia, onde chegou a chefe da reportagem. Convidado por Odylo Costa, filho, ingressou na redação do Jornal do Brasil, na época da reforma editorial do diário, e ao mesmo tempo atuou na Rádio Jornal do Brasil.

Em julho de 1958 transferiu-se para O Globo onde, destacado para a cobertura da área da política exterior, fez várias viagens internacionais entre as quais ao Chile para a cobertura da V Conferência Extraordinária dos Chanceleres Americanos, e aos Estados Unidos, convidado pelo Departamento de Estado americano e enviado por O Globo para escrever sobre a primeira visita de Nikita Kruschev à ONU. Na mesma ocasião entrevistou Alexander Kerensky, então diretor da Torre Herbert Hoover, na Universidade de Stanford, na Califórnia e participou de uma semana de estudos brasileiros, naquela universidade, em que a homenageada foi a poetisa Cecília Meireles. Em abril de 1960 integrou a equipe de O Globo que, chefiada por Mauro Salles, fez a cobertura da inauguração de Brasília. Naquele mesmo ano assumiu a chefia da reportagem política do Diário de Notícias, então sob a direção de Prudente de Morais, neto, onde escreveu a coluna “Notas Políticas”, em substituição de Heráclio Salles.

Convidado por José Aparecido de Oliveira e pelo prefeito de Brasília, Paulo de Tarso Santos, em 1961 transferiu-se para a nova capital, onde foi Secretário de Imprensa da Prefeitura do Distrito Federal, diretor de Relações Públicas da Novacap e ao mesmo tempo atuou, ao lado de José Aparecido, na coordenação da equipe, chefiada por Candido Mendes de Almeida, que preparou a primeira (e única) mensagem do Presidente Jânio Quadros ao Congresso Nacional. Integrou o Conselho Fiscal da Fundação Cultural de Brasília, presidida por Ferreira Gullar, ao lado do então deputado José Sarney.

No governo parlamentarista de João Goulart/Tancredo Neves, foi subchefe do gabinete do Ministro Franco Montoro, na pasta do Trabalho e Previdência Social e em 1962 foi nomeado representante do governo no Conselho Fiscal do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), sendo naquele mesmo ano eleito presidente do órgão, do qual foi demitido em abril de 1964.

Com a instalação do regime militar, voltou a trabalhar na Tribuna da Imprensa de Hélio Fernandes, e em O Cruzeiro, sob a direção de Odylo Costa, filho. Com Odylo, Álvaro Pacheco e o diplomata Pedro Penner da Cunha adquiriu uma empresa gráfica, de cujas máquinas saíram as duas primeiras edições da revista de contos Ficção, editada com a colaboração de Antônio Olinto e Roberto Seljan Braga. Em seguida, com Pedro Penner da Cunha, fundou a Edinova, editora pioneira no Brasil no lançamento de literatura latino-americana e do nouveau roman francês.

Em 1965 participou de conferência de jornalistas em Bonn, na Alemanha, que resultou na criação da agência internacional de notícias Interpress Service, da qual foi diretor no Brasil. Naquele mesmo ano retornou ao Correio da Manhã, onde escreveu a coluna diária “Quatro Cantos!, de oposição ao governo militar, e conviveu com Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Paulo Francis, José Lino Grünewald, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues. Sobre esta fase do seu trabalho, Alceu Amoroso Lima escreveu, em artigo publicado no Jornal do Brasil, “Cícero Sandroni renovou o colunismo, na imprensa do Rio de Janeiro”.

Com a censura imposta à imprensa após o Ato Institucional nº 5 e o arrendamento do jornal, deixou o jornalismo diário e ingressou em Bloch Editores, onde foi redator-chefe das revistas Fatos e Fotos, Manchete e Tendência. Sob sua direção esta última recebeu, em 1974, o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria de Melhor Contribuição à Imprensa. Em 1976 dirigiu, para Fernando Gasparian, a última fase do Jornal de Debates, semanário de política e economia fundado por Mattos Pimenta, que se notabilizara, na década de 50, na luta pela criação da Petrobras.

Ainda em 1976 lançou novamente a revista Ficção, com Fausto Cunha, Salim Miguel, Eglê Malheiros e Laura Sandroni. Na segunda fase, em 44 edições, Ficção publicou mais de quinhentos autores brasileiros. Naquele mesmo ano coordenou, com os escritores Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Hélio Silva, José Louzeiro, Ary Quintella e Jefferson Ribeiro de Andrade um manifesto contra a censura aos livros, assinado por mais de mil intelectuais brasileiros, conhecido como o Manifesto dos Mil. Publicado na imprensa, o documento impediu a continuação da censura aos livros, que proibira a circulação de mais de quatrocentos títulos de autores brasileiros e estrangeiros. O mesmo grupo renovou o Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e levou à sua presidência o Acadêmico Antonio Houaiss.

Em 1977, a convite de Walter Fontoura, retornou ao Jornal do Brasil inicialmente como redator do Caderno B, onde escreveu sobre arte e cultura e foi crítico de cinema. Em seguida editou o suplemento literário “Livro” e de 1979 a 1983 escreveu a coluna “Informe JB”. Em 1984 assinou a coluna “Ponto de Vista”, no jornal Última Hora, com a colaboração do poeta José Lino Grünewald. Nesse tempo, foi um dos primeiros jornalistas a defender a realização de eleições diretas para a presidência da República.

Em 1984 editou o Jornal do País, semanário de Neiva Moreira e, em 1985, escreveu artigos sobre política para a Tribuna da Imprensa. Colaborou com a revista Elle, onde publicou perfis de artistas e escritores e colaborou com resenhas de livros para a página literária de O Globo. Naquele mesmo ano passou a colaborar com a Companhia Vale do Rio Doce na área de assuntos culturais. Foi editor do “house-organ” Jornal da Vale e coordenou duas edições do Prêmio Nacional de Ecologia, instituído pela CVRD e apoiado pelo CNPq., Petrobras e a SEMA. Em 1990 foi editor-geral da Tribuna da Imprensa e a seguir passou a escrever uma página semanal sobre cultura e política.

Em 1991 fundou, para a prefeitura do Rio de Janeiro, o mensário literário RioArtes, o qual dirigiu até ser convidado, em fins de 1992, pelo então ministro da Cultura, Antonio Houaiss, e o presidente da Funarte, Ferreira Gullar, para dirigir o Departamento de Ação Cultural da entidade. No DAC, entre outras atividades na área das artes plásticas e da música, organizou o Salão Nacional de Artes Plásticas de 1993 e 1994 e a Bienal de Música de 1994. Na mesma ocasião dirigiu, com Ferreira Gullar e Ivan Junqueira, a revista Piracema.

Editor de Cultura e Opinião do Jornal do Commercio em 1995, afastou-se no ano seguinte para escrever, com Laura Sandroni, a biografia de Austregésilo de Athayde. Voltou ao Jornal do Commercio em 2000, como diretor-adjunto da Redação e participou, com Antônio Calegari, da reforma gráfica que modernizou o Jornal. Criou o suplemento cultural Artes e Espetáculos e deixou a redação em agosto de 2003 para escrever a história do Jornal do Commercio, publicação prevista para 2005.

Cícero Sandroni tem participado de vários júris de prêmios jornalísticos notadamente o Esso de Jornalismo, o Prêmio Embratel de Jornalismo e o Prêmio de Jornalismo Científico do CNPq. Na área de literatura integrou o júri do concurso de contos da revista Ficção, e do Prêmio Goethe de literatura do ICBA. Colaborador de jornais e revistas, tem participado de seminários de jornalismo e literatura e pronunciado palestras sobre aqueles temas em centros universitários. Escreveu prefácios para vários livros, entre os quais Memórias Improvisadas de Alceu Amoroso Lima e Medeiros Lima, segunda edição.

Casado desde janeiro de 1958 com a escritora Laura Constância Austregésilo de Athayde Sandroni, tem cinco filhos, Carlos (1958) sociólogo e Doutor em Etnomusicologia pela Universidade de Tours, França; Clara (1960), cantora e bacharel em música pela UniRio; Eduardo (1961), ator e diretor de teatro formado pela CAL; Luciana (1962) autora de literatura infantil e mestre em literatura pela PUC de SP e Paula (1970), atriz, diretora de teatro e pós-graduada em teatro pela UniRio. O casal tem um neto, Pedro, nascido em agosto de 2003.
Conversa de bêbado no alto escalão

Mesmo nos anos mais duros da guerra, quando os aviões da Luftwaffe despejavam bombas sobre Londres e outras cidades inglesas, Winston Churchill jamais dispensou uma garrafa de champanhe ao almoço e outra ao jantar; uma dose de uísque ao entardecer e duas ou três antes de deitar-se, às duas da manhã. Então metia-se na cama, dizia para si mesmo ''danem-se todos!'' e dormia tranqüilamente, sem sonhar. Alcançar objetivos concretos, na paz ou na guerra, constituía para ele algo melhor do que o sonho. E se a realidade incluísse garrafas de fermentados ou destilados, melhor.

Em agosto de 1942, quando Hitler estava na ofensiva na frente russa, Churchill empreende cansativa e perigosa viagem aérea de Londres até Moscou, com escala no Cairo e em Teerã, para explicar ao seu antigo inimigo e então novo parceiro na guerra, Josef Stalin, que os aliados não abririam logo uma segunda frente na Europa, operação que desde a invasão nazista os soviéticos exigiam desesperadamente para ontem. Antes disso, tropas britânicas e americanas invadiriam a África para expulsar Rommel do Egito e controlar o Mediterrâneo. A invasão pelo norte da França só viria depois.

Na primeira reunião dos dois líderes e seus assessores (Motolov e Alexander Cadogan), enquanto eles discutiam no Kremlin, tropas nazistas estavam próximas da capital. Impaciente, Stalin exigia a abertura da segunda frente na Europa.

- O que os ingleses esperam? - indagava o marechal, com a voz alterada - Estão com medo de combater os soldados nazistas?

A argumentação de Stalin encontrou resistência por parte de Churchill, que ignorou o insulto: os aliados nada fariam além do acertado com Rooselvelt. Invadir o norte da França antes de 1943 (o desembarque na Normandia só ocorreu em julho de 1944) seria um desastre militar que permitiria a Hitler consolidar seu poder na Europa. Enfurecido, Stalin não teve outro recurso senão conformar-se. Mas arrancou a promessa de que a RAF e os americanos bombardeariam a Alemanha - o que Churchill não precisava prometer: os aviões aliados já despejavam bombas sobre Hitler.

Na véspera de sua partida, depois de dois dias de discussões, Churchill vai ao Kremlin para despedir-se. Mais conformado, Stalin adota tom cordial, em diálogo traduzido por um poliglota chamado Pavlov, que nada conhecia de reflexologia:

- Você parte ao raiar do dia. Por que não vamos à minha casa para beber um pouco? Tenho lá boa adega, você não se arrependerá.

Churchill respondeu que apoiava a política dos drinques à tarde, mesmo em uma Moscou quase nas mãos dos nazistas. Detalhes sobre o encontro estão nas suas Memórias da Segunda Guerra Mundial, em tradução de Vera Ribeiro, com selo da editora Nova Fronteira. Vale a pena ler a descrição da insólita happy hour de dois líderes que, naquele momento decisivo e dramático, parecia o encontro casual de dois amigos no melhor dos mundos; jogavam conversa fora enquanto russos e alemães lutavam encarniçadamente bem perto do Kremlin. Os dois tinham consciência do que acontecia na desesperada linha de resistência soviética, mas precisavam se conhecer melhor. E também porque, como diria o inglês, que diabo, gostavam de beber.

Stalin jogava sua última carta naquele pôquer em que as fichas eram as vidas de milhões de soldados soviéticos: esperava embebedar Churchill e assim obter dele o compromisso de invadir a Europa nazista; com o monstro voltado para quem o atacasse no canal da Mancha ele teria um alívio nos Urais. Mas, diante da implacável firmeza do seu companheiro de copo, irritou-se:

- A Marinha britânica não tem senso de glória? Vocês eram os donos dos mares e agora têm medo de atravessar o Canal da Mancha?

- Você pode crer - respondeu Churchill - o que estamos fazendo é o certo. Eu entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.

- O que significa então que eu não entendo nada? - respondeu, abrupto, Stalin, fingindo-se envolvido.

- A Rússia é animal terrestre - retrucou Churchill - enquanto os britânicos são animais marítimos. Nós conhecemos a nossa força naval, sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Não despreze a força dos submarinos nazistas, que já destroçaram boa parte da nossa frota.

Stalin permaneceu instantes em silêncio, contendo a raiva que sentia daqueles ingleses resistentes à bebida e de quem precisava desesperadamente. Enfim, meio conformado, disse:

- Vamos chamar o Motolov, ele também gosta muito de beber.

Churchill concordou e por sua vez convidou o embaixador Alexander Cadogan, que segundo ele, também era bom de copo. E a conversa continuou, agora a quatro, com o professor Pavlov dividindo-se entre eles, enquanto as garrafas iam sendo esvaziadas. E assim passavam as horas, contando histórias e anedotas, levantando brindes à vitória que sabiam estar tão longe quanto perto de Moscou estavam os alemães. Nas palavras de Churchill: ''Bebemos uma multiplicidade de vinhos excelentes. Motolov assumiu seus ares mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente''.

O encontro terminou às 2h30m da manhã, com as despedidas de Stalin, que foi ler os telegramas que chegavam do front; a situação estava ruim, mesmo. Churchill voltou à Residência Estatal nº 7, ainda encontrou forças para ouvir as queixas de um impaciente general polonês que o esperava, e não teve tempo para dormir. Quando chegou ao aeroporto, às 5h, sua cabeça estalava. E lá encontrou, para as despedidas, um cambaleante Motolov.

- Você achou que eu não viria? - perguntou o russo, estremunhado.

Churchill agradeceu a gentileza do ministro do Exterior soviético e embarcou, sem fazer idéia de onde Motolov arranjaria forças para passar aquele dia. Quanto a ele, confessou: dormiu durante toda a viagem.

Mesmo na hipótese improvável de Stalin conseguir de Churchill embriagado o compromisso de invadir a França, dificilmente Roosevelt embarcaria nessa canoa. E por falar em Roosevelt: mesmo doente, o presidente americano jamais dispensou dois ou três martínis antes do jantar. Não era uma esponja do calibre de Churchill ou de Stalin, mas também entornava bem. O Times, os tablóides londrinos ou o The New York Times jamais informaram aos seus leitores londrinos que a guerra contra os nazistas era conduzida por três líderes que bebiam todas.

E que no final venceram Adolf Hitler, um ditador sanguinário e... abstêmio.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 26/05/2004


Sobre o passarinho Mario Quintana
Convidado pela ABL para falar sobre o centenário de nascimento de Mario Quintana, o professor gaúcho Sergius Gonzaga veio de Porto Alegre e, em sessão coordenada pelo acadêmico Moacyr Scliar, discorreu na Sala José Alencar, para um auditório repleto e atento, sobre a obra do grande poeta que, infelizmente, não pertenceu aos quadros da Academia.

No correr da sua história, a ABL viu-se obrigada a escolher, em determinadas eleições, entre grandes figuras da literatura brasileira. Mario Quintana concorreu em três ocasiões à ABL nos anos 80, mas as razões eleitorais da Instituição não lhe permitiram alcançar os vinte votos necessários para ter direito a uma poltrona.

Em que medida este fato alcança a sua imortalidade? Em nada. A glória que fica, eleva, honra e consola não é privilégio dos quarenta. Grandes nomes da literatura brasileira ausentes do Petit Trianon podem ser contados às dezenas, sem que essa circunstância nem de longe alcance o valor da obra reconhecida pela crítica e pelo público.

Este é, sem dúvida, o caso de Mario Quintana. E quando lembro seu verso "enquanto os outros passarão, eu passarinho", penso que talvez tenha sido melhor assim. Quintana passarinho necessitava de mais espaço para o seu vôo, hoje e sempre a encantar todos os que, ao passar pelo efêmero da vida, descobrem a essência da obra imortal.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 29/07/2006


Monstros contra deuses

Sucesso em Hollywood depende menos de talento e mais de estar no lugar certo na hora certa, dizia William Henry Pratt, ator inglês que emigrou para os Estados Unidos em 1913, adotou o nome de Boris Karloff e tornou-se mundialmente conhecido ao interpretar o monstro no filme Frankenstein, do diretor James Whale. O lugar certo para Karloff alcançar o sucesso foi a lanchonete do estúdio da Universal, em Hollywood, onde o diretor Whale tomava chá gelado e, ao vê-lo, impressionou-se com seu rosto.

O primeiro trabalho de James Whale para a Universal seria uma adaptação do romance de Mary Shelley e ele procurava um ator com o physique du rôle para encarnar o monstro. Quando viu Boris na lanchonete do estúdio, chamou-o e, comentou:

- Seu rosto tem possibilidades surpreendentes... Você gostaria de fazer um teste para o papel da criatura do doutor Frankenstein?

Boris espantou-se com a proposta, mas aceitou o teste e, logo na primeira cena, demonstrou que, se alguém poderia interpretar a criatura imaginada por Mary Shelley, era ele e ninguém mais. Começou a trabalhar obedientemente sob as ordens de um tirânico Whale. O ''escultor'' da face horrível e insondável foi Jack Pierce, o chefe de maquiagem do estúdio. E, desde a primeira tomada, a persona do monstro impressionou a todos. Em pouco tempo ninguém tinha dúvidas de que a figura desengonçada e maligna seria a principal atração do filme.

Não foi necessário passar muito tempo para Whale perceber que a grotesca figura permaneceria para sempre no imaginário de todos, enquanto ele, o diretor do filme, seria esquecido. E tinha razão. Só mesmo os cinéfilos guardaram seu nome, enquanto o monstro construído por Pierce a partir do corpo de Karloff tornou-se um dos ícones do terror do século 20, popularizando a obra de Mary Shelley. E a tal ponto que quando Bill Condon faz um filme para mostrar os dias finais de Whale, quem aparece na última cena é o ator Brandon Fraser imitando Karloff na pele do monstro. A criatura mais uma vez vencera o criador.

Lançado em 1931, com produção de US$ 250 mil, Frankenstein rendeu US$ 12 milhões à Universal e salvou a empresa da falência. Descoberto o filão, Carl Laemmle, o chefão do estúdio, queria mais filmes de terror com a dupla Whale/Karloff, mas o diretor resistiu a um novo confronto com aquela força da natureza, que eletrizava as audiências assim que sua figura disforme aparecia na tela. Só em 1935 Whale sentiu-se com forças para enfrentar o monstro novamente e consentiu fazer uma continuação da história de Mary Shelley: A noiva de Frankenstein, com Elsa Lanchester. Submetida ao mesmo tratamento de Pierce, Elsa (que também interpreta Mary Shelley no prólogo do filme) servia de contrapeso à presença de Karloff.

Boris Karloff prosseguiu então em sua carreira, muito marcado pela figura do monstro. Por excessiva modéstia, costumava dizer que não podia se comparar com os grandes atores ingleses da época, a exemplo de Laurence Olivier, Leslie Howard e John Gielguld. Talvez não fosse mesmo grande como eles, mas o sistema patronal de exploração, vigente em Hollywood, o condenava aos filmes de horror. E, quando ele conseguia escapar, era para interpretar gângsteres ou índios, ou então paródias de si mesmo, como no filme The seven lifes of Walter Mitty, com Danny Kaye.

Na vida real, segundo conta Cynthia Lindsay no livro Dear Boris, uma biografia, ele era tímido, cordial e excessivamente modesto. Apesar da fama, raramente conseguia bons papéis em filmes que não fossem de terror. E, tal como o monstro que ansiava pela liberdade e por uma vida ''humana'', ele também tentou livrar-se do estereótipo para mostrar sua capacidade de interpretar outros tipos que não apenas vilões ou monstros. Mas quase nada conseguiu. Peter Bogdanovitch contou um pouco do seu drama em Targets, de 1968, no qual Boris Karloff interpreta Byron Orlok, ator de filmes de horror que deseja fazer outro tipo de cinema, que não os filmes de violência.

Pouco se vê de Boris Karloff no filme Deuses e monstros, de Bill Condon, no qual a interpretação magistral de Yan McKellen no papel de James Whale, nos seus últimos dias, domina a história do começo ao fim. Mas nas sombras da tela - e na mente do Whale personagem - a presença do monstro, tal como criado por Karloff, é intensa. E repercute até hoje, nas imagens do terror produzido para o consumo das multidões, permanecendo no imaginário de todos e na iconografia do século 20. Quem, em criança, não sentiu medo do monstro Frankenstein, dos filme de Whale e seus epígonos, ou, mais tarde, não riu do jovem Frankenstein da comédia de Mel Brooks, ou ainda, entre nós, não se divertiu com o fascinante Frankenstein punk, curta-metragem de Cao Hamburguer?

O monstro está entre nós. E não apenas por sua figura aterrorizante. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Leclerc, o romance de Mary Shelley permite várias leituras. A que ele fez no seu livro Frankenstein, mito e filosofia apresenta o monstro na condição de metáfora das massas exploradas, que reagem de forma ''monstruosa'' na Revolução Francesa, ou nas manifestações da mob londrina. Para Leclerc, Mary Shelley construiu o seu monstro com pedaços do proletariado nascente (uma espécie de Prometeu acorrentado), influenciada pelos acontecimentos históricos da época e pelas idéias libertárias de seu marido, o poeta Percy Shelley, cujo codinome, na polícia política, era Red Shelley.

Mas, se no filme de Whale sobra muito pouco do texto de Mary Shelley, muito menos fica, é claro, da leitura ideologizada que Jean-Jacques Leclerc fez. No entanto, não se pode ser muito rigoroso com as versões filmadas. E, no caso de Frankenstein, de Whale, seu filme sobreviveu exatamente por aquilo que ele mais temia: a fixação de um mito criado no século 19, na aterrorizante figura do monstro, interpretado por Boris Karloff.

E, quando ele aparece na tela, patético e selvagem, podemos até pensar que, em relação ao Brasil de hoje, Leclerc talvez tenha um pouco de razão. Aqui, tal como no ancien régime na França ou durante a Revolução Industrial na Inglaterra, os donos do poder vêem e tratam as dezenas de milhões de excluídos da economia do mercado como seres monstruosos, ameaçadores e perigosos, quando são apenas sub-empregados, explorados, desempregados e desesperados em busca de um mínimo de condição humana. E muitos deles incapazes de articular palavras de defesa, tal como a criatura imaginada por Mary Shelley, o monstro cujas cordas vocais só emitiam grunhidos.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 04/08/2004

Um comentário:

  1. Anônimo21:03

    Um paulista filho de pais mineiros! Cícero Augusto Ribeiro Sandroni, um dos grandes responsáveis pela suspensão da censura aos livros na época da ditadura, redator e jornalista notável,dotado de uma hilária seriedade em seus escritos pelo que se deduz de algumas de suas publicações, ocupante de vários cargos do alto escalão político do cenário brasileiro, eis um pouco do nosso Presidente da ABL! Maria Granzoto

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