História da Literatura Brasileira III


Página Maria Granzoto
Editora de Literatura Brasileira do artculturalbrasil
Arapongas - Paraná
"História da Literatura Brasileira"
José Veríssimo Dias de Matos
Rio (Engenho Novo), 11 de julho de 1915
CAPÍTULO II
Primeiras manifestações literárias
Os versejadores
As literaturas começam sempre por um livro, que freqüentemente não tem outro mérito que o da prioridade. Literatura oral, como foi primeiramente a nossa, é apenas uma acepção particular, larga demais e abusiva desse vocábulo. Não importa que esse livro seja uma obra-prima ou sequer estimável; basta que tenha a intenção, o feitio e o caráter da obra literária. E que se lhe possa descobrir, ou mesmo emprestar, uma representação da sociedade ou da vida que o produziu. Mas o só fato de ser o ponto de partida de uma literatura lhe marca na história dela um lugar irrecusável.
Qual foi o brasileiro que, quando ainda mal se esboçava aqui uma sociedade, escreveu e publicou uma obra literária?

Há várias e incertas notícias de uma crônica escrita em Pernambuco talvez antes do século de 600. Seria porventura o primeiro escrito feito no Brasil. Sobre se não saber nada a seu respeito, nem do seu autor, sequer se era brasileiro, é duvidoso tivesse essa obra alguma importância para a história da nossa literatura. Mas independentemente da sua existência e qualificação literária foi Pernambuco o lugar em que abrolhou a flor literária em nossa pátria.
Para este resultado - explana o insigne sabedor que o verificou - concorreu mais de um fator. Pernambuco desenvolveu-se regularmente; Duarte Coelho desde o desembarque e empossamento da terra domou os índios, que nunca mais fizeram-lhe frente com bom êxito; os colonos viram logo remunerados os seus labores; o solo era fértil; a vida fácil; a sociabilidade e o luxo consideráveis; a população branca em geral de origem comum (Viana) apresentando menos elementos disparatados, mais depressa tendia à unificação; o sentimento característico do nosso século XVI - o desprezo e desgosto pela terra brasileira, o transoceanismo... ali primeiro arrefeceu. Acrescente-se a facilidade e freqüência de viagens à Europa, a conseqüente abundância de comodidades, cuja ausência algures tornava o país detestado e detestável; o natural versar de livros históricos, como o de João de Barros, em que fulgiam os nomes de Albuquerque e Duarte Coelho, a tendência literária dos capitães-mores de terra... que escreveram livros.
Em 1601 saía em Lisboa, da imprensa de Antônio Alvarez, um opúsculo de dezoito páginas, in-4º, trazendo no alto da primeira do texto este título: Prosopopéia Dirigida a Jorge Dalbuquerque Coelho, Capitão, e Governador de Pernambuco, Nova Lusitana, etc. O nome do autor Bento Teyxeyra vinha, assim escrito, embaixo do Prólogo, no qual fazia ao seu herói o oferecimento da obra.
É um poema de noventa e quatro oitavas, em verso endecassílabo, sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio de reminiscências, imitações, arremedos e paródias dos Lusíadas. Não tem propriamente ação, e a prosopopéia donde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando post facto, os feitos e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerques, particularmente de Jorge, o terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado. Não tem mérito algum de inspiração, poesia ou forma. Afora a sua importância cronológica de primeira produção literária publicada de um brasileiro, pouquíssimo valor tem. No meio da própria ruim literatura poética portuguesa do tempo - aliás, a só atender à data em que possivelmente foi este poema escrito, a melhor época dessa literatura - não se elevaria este acima da multidão de maus poetas iguais.
O poeta ou era de si medíocre, ou bem novo e inexperiente quando o escreveu. Confessa aliás no seu Prólogo, já gongórico antes do gongorismo (tanto o vício é da nossa raça) que eram as suas «primeiras primícias». Não se sabe se veio a dar fruto mais sazonado. Nos seus setecentos e cinqüenta e dois versos apenas haverá algum notável, pela idéia ou pela forma. São na maioria prosaicos, como banais são os seus conceitos. A língua não tem a distinção ou relevo, e o estilo traz já todos os defeitos que maculam o pior estilo poético do tempo, e seriam os distintivos da má poesia portuguesa do século seguinte, o vazio ou o afetado da idéia e a penúria do sentimento poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes, sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único, restaurara esses recursos na poesia do seu tempo.
Conforme a regra clássica, começa o poema pela invocação. É de justiça reparar que começa com uma novidade, a invocação é desta vez dirigida ao Deus dos cristãos. Além do Deus, invoca a Jorge de Albuquerque «o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe de Albuquerque excelente» com versos diretamente imitados do Lusíadas. A memória fresca do poema de Camões está por todo o poema do nosso patrício, em que não há só reminiscências, influências mas versos imitados, parodiados, alguns quase integralmente transcritos, e ainda alusões à grande epopéia portuguesa. Nada porém comparável ao gênio criador com que Camões soube imitar e superar os seus modelos.
Depois da invocação preceitual segue-se no poema de Bento Teixeira, como também era de regra, a «narração» expressamente designada do livro. A ação do poema é falada ou narrada. Proteu a diz de sobre o recife de Pernambuco. Seis estrofes o descrevem, de um modo insípido, pura e secamente topográfico:
Para a parte do sul onde a pequena ursa, se vê de guardas rodeada, onde o Céu luminoso mais serena, tem sua influição, e temperada. Junto da nova Lusitânia ordena, a natureza, mãe, bem atentada, um porto tam quieto e tam seguro, que pera as curvas naus serve de muro.
E assim por diante sem nada que lhe eleve o tom até à poesia.
Dali, por ordem de Netuno, profetiza Proteu, num largo canto em louvor dos Albuquerques e nomeadamente de Jorge, a quem se endereça esta prosopopéia. Vê Proteu:
A opulenta Olinda florescente chegar ao cume do supremo estado será de fera e belicosa gente o seu largo distrito povoado por nome terá, Nova Lusitânia, das leis isenta da fatal insônia.
Esta Lusitânia será governada por Duarte Pacheco «o grão Duarte» que o poeta, pela voz de Proteu, compara a Enéias, a Públio Cipião, a Nestor e a Fábio. E tudo o que até então tinha passado com os Pachecos e Albuquerques, já celebrados por Camões, ocorre a Proteu que o profetiza posteriormente desmedindo-se no louvor e encarecimento. Acaba o poema pouco originalmente, com as despedidas do poeta, repetindo a promessa de voltar com um novo canto, "Por tal modo que cause ao mundo espanto." Jorge de Albuquerque Coelho, o motivo senão o herói deste poema, era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, onde Jorge nasceu, em Olinda, em 1539. O enfático padre Loreto Couto, falando dele como de sujeito verdadeiramente extraordinário, assevera que ainda que Pernambuco não tivera produzido outro filho bastaria este para a sua imortal glória. E mais, que foi este insigne pernambucano um daqueles espíritos raros para cuja produção tarda séculos inteiros a natureza, pois à sua rara virtude e insigne valor, acrescentou uma erudição rara e conhecimento das letras humanas.
Uma e outro não teriam sido adquiridos no Brasil. Se são exatas, como parece, as notícias de Jaboatão, Jorge Albuquerque criou-se em Portugal, onde aos 14 anos se achava. Com 20 voltou a Pernambuco, donde tornou ao Reino, em 1555, aos 26 anos, após a sua brilhante campanha contra os índios da capitania. Nesta viagem para Portugal sofreu o naufrágio célebre da nau Santo Antônio que o levava, cuja relação, escrita pelo piloto Afonso Luís e reformada por Antônio de Castro, foi atribuída a Bento Teixeira. Em Portugal «foi de todos aplaudido de cortesão, generoso, discreto, liberal, afável e modesto». Em suma, se havemos de crer os seus panegiristas mais próximos dele e os que os copiaram, teria sido um portento de gentilezas guerreiras e de virtudes civis.
Poemas como a Prosopopéia do nosso patrício, que este herói motivou, em tudo medíocre, endereçados a potentados e magnates, armando-lhes à benevolência e proteção, eram freqüentíssimos e superabundavam na bibliografia da época.
Em todos os tempos poetas e literatos foram inclinadíssimos à bajulação dos poderosos. Casando-se geralmente pouco o seu gênio com o árduo de uma existência de trabalho e esforço próprio, e amando sobretudo os lazeres da vida ociosa, propícios às suas invenções e imaginações, para o haverem sacrificam de boa mente à vaidade dos grandes dos quais sem mais fadiga que a de contá-los e louvá-los, esperam lucrar tais ócios, muito seus queridos. Igualmente caroáveis da grandeza, pompa e luxo desses magnates, com os quais facilmente se embevecem, à satisfação desse gosto imolam brios e melindres. Em Portugal tais poetas e literatos faziam até parte da domesticidade da corte ou das grandes casas fidalgas e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras com que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos domésticos, nascimentos, casamentos, mortes, façanhas guerreiras, vantagens sociais obtidas, aniversários. Como havia destes poetas efetivos, privados, caseiros, os havia também ocasionais, mas não menos prontos ao louvor hiperbólico, à lisonja enfática, à bajulação rasteira, em câmbio da proteção solicitada ou em paga de alguma graça obtida. Na sociedade de então o homem de letras, ainda sem público que o pudesse manter, e até forçado e apenas muito limitadamente exercer a sua atividade, quase só dos principais pelo poderio e riqueza, que acaso lhes estimassem as prendas sem os estimar a eles, podia viver.

Freqüentemente eram estes que lhe mandavam imprimir as obras, que sem tais patronos dificilmente achariam editores. Tais costumes, explicáveis e porventura desculpáveis pelas condições do tempo, passaram naturalmente do Reino à sua colônia da América, onde os vice-reis, governadores e capitães-generais e mores faziam de reis pequenos, e os fazendeiros, senhores de engenho e outros magnates locais substituíram e arremedavam os grãos-senhores da Metrópole. Tanto passaram que desde as suas primeiras manifestações, a poesia, e depois toda a espécie de literatura, inspirou-se grandemente aqui daqueles motivos, e foi consideravelmente áulica. Aulicismo, arcadismo, gongorismo foram sempre aliás traços característicos das letras portuguesas.
Quer em Portugal, quer no Brasil duraram estes costumes até o século XVIII. Não sei aliás se é possível dizer estejam de todo extintos. Mais certo será tenham antes variado e se transformado do que desaparecido completamente as formas e modos com que poetas e literatos sempre atiraram ao patrocínio dos poderosos, adulando-os em prosa e verso. Seja que ainda pesa sobre eles essa herança, seja porque continuam a preferir alcançar por tais meios o que só com fadiga e dificuldade lhes daria trabalho mais honesto, certo é não desapareceu o costume de todo. Bento Teixeira fica, pois, sendo, não só o primeiro em data dos poetas brasileiros, mas o patriarca dos nossos «engrossadores» literários. E de ambos os modos progenitor fecundíssimo de incontável prole.
É muito provável que simultaneamente com ele, se não antes, houvesse o Brasil produzido outros versejadores áulicos, isto é, cujo principal motivo de inspiração fosse angariar o patrono de algum poderoso da terra. O mundo dividiu-se sempre entre patronos e clientes. Todavia não sabemos de nenhum que o antecedesse ou viesse ao seu tempo.
Conjetura-se com bons fundamentos houvesse composto o seu poema nos últimos anos do século, com certeza depois do desastre de D. Sebastião em África, em 1578, a que já o poema se refere. Talvez nos arredores de 1596, que neste ano ainda vivia Jorge de Albuquerque e o poema foi composto quando ele vivo.
De Bento Teyxeyra, como ele o assinou, ou Bento Teixeira Pinto, como também lhe escreveram o nome, nada mais se sabe além da parca notícia do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, publicada em 1741; que nasceu em Pernambuco e era «igualmente perito na poética e na história». Não diz nem o lugar nem a data do nascimento. Um cronista pernambucano, posterior a Barbosa Machado, o citado padre Couto, noticiador geralmente de segunda mão, apenas acrescenta que era de Olinda. Dele não há nenhuma notícia contemporânea, e estas mesmas vagas informações de mais de um século posteriores, não foram jamais verificadas ou ampliadas por quaisquer investigações ulteriores. Outras notícias que dele há em escritores mais modernos são de pura inventiva de seus autores.
Chama-lhe de "perito na história" o bibliógrafo Machado, e com este o padre Couto, que apenas o repete, por lhe atribuírem ambos a obra em prosa Diálogos das grandezas do Brasil. Como começou a provar Varnhagen em 1872, e pode-se hoje ter por incontestável, essa obra, porventura a mais interessante da primitiva literatura do Brasil, não é de Bento Teixeira. E é pena, pois vale mais do que a sua trivial e insípida Prosopopéia. Como quer que seja, marca esta o primeiro passo dos brasileiros na vida literária, é o primeiro documento da sua vontade e capacidade de continuar na América a atividade espiritual da Metrópole.

Publicada ali, ali mesmo se teria sumido, confundida na massa enorme de quejandas produções. Talvez ficasse até desconhecida no Brasil. Não só não há menção ou memória dela além das duas indicadas, ambas em suma de origem portuguesa, mas outro poeta brasileiro, Manoel Botelho de Oliveira, dando à luz um livro de versos um século depois, gabava-se de ser o primeiro brasileiro que os publicava. E dos dois únicos exemplares originais que se lhe conhecem, o único existente no Brasil, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, veio de Portugal (onde está o outro na Biblioteca Nacional de Lisboa) na coleção de livro do citado Barbosa Machado.
O apreço da terra, mesmo uma exagerada admiração dela, da sua natureza, das suas riquezas e bens, é uma impressão comum nos primeiros que do Brasil escreveram, estranhos e indígenas. Como veremos, será essa impressão que, fazendo-se emoção e estímulo de inspiração, imprimir à nossa literatura o primeiro traço da sua futura diferenciação da portuguesa. Não é desapropositado notar que a primeira manifestação do gênio literário brasileiro é um poema relativo a cousas da terra embora ainda sem emoção que lhe dê maior relevo e significação.
Antes, porém, de Bento Teixeira e de versejadores de igual jaez, que porventura houve, ou simultaneamente com aquele, versejaram também padres jesuítas compondo cantigas devotas para os seus catecúmenos. Esta primitiva literatura jesuítica se não limitava, entretanto, a tais cantigas. Desde que esses padres aqui se estabeleceram, por meado do século XVI, compreendia discursos em prosa e verso, epigramas ou poemas conceituosos alusivos aos motivos das festividades, diálogos em verso ou prosa ou misturados de ambos e cenas dialogadas representadas em tablados ou ramadas à guisa dos autos no Reino, infalivelmente sobre um assunto de devoção e edi-ficação. Comumente misturavam-se neste autos o latim e o português e também o castelhano. Serviam-lhe de atores ou recitadores os índios amansados e menos broncos, algum discípulo europeu dos jesuítas e até um destes padres. Das festividades em que tinham lugar estas manifestações literárias -se tal se lhes pode chamar- dá repetidas notícias o padre Fernão Cardim, deixando ver quão freqüentes e gerais eram em toda a costa brasílica.
Dos autores de tais produções o mais, ou antes o único, conhecido é o padre José de Anchieta, figura tão verdadeiramente venerável que não conseguiu desmerecê-la a admiração carola com que tem sido exalçado. Noticia o seu confrade padre Simão de Vasconcelos que Anchieta «compôs com vivo e raro engenho, muitas obras poéticas, em toda a sorte de metro, em que era mui fácil, todas ao divino e a fim de evitar abusos e entretenimentos menos honestos. Entre estes foram a de mais tomo o livro da vida e feitos de Mem de Sá, terceiro governador que foi deste Estado, em verso heróico latino; várias comédias, passos, éclogas, descrições devotíssimas que ainda hoje andam na sua mesma letra; e a vida da Virgem Senhora Nossa em verso elegíaco. Em a sua Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, em 1663, já o mesmo padre assim informava da particular atividade literária do seu eminente companheiro: «Era destro em quatro línguas: portuguesa, castelhana, latina e brasílica; em todas elas traduziu em romances pios com muita graça e delicadeza, as cantigas profanas que então andavam em uso; com fruto das almas, porque deixadas as lascívias não se ouvia pelos caminhos outra cousa senão cantigas ao divino, convidados os entendimentos a isso do suave metro de José».
Das suas comédias, ou melhor autos sacros, a mais considerável é a Pregação Universal, circunstancialmente mencionada pelo seu biógrafo, e da qual são conhecidos alguns trechos, como o são algumas outras, bem poucas aliás, composições suas. São puras obras de catequização, devoção e edificação sem intuitos nem qualidades literárias, apenas conhecidas de fragmentos e sem unidade de estilo ou sequer de língua, pois as escrevia, consoante o interesse do momento, em português, latim ou castelhano e ainda em tupi e até misturava estes idiomas. Mas estas mesmas composições, como o seu poema da Vida de Mem de Sá ou da Vida da Virgem Maria, ambos em latim, o que basta para excluí-los da nossa literatura, e mais as suas notícias e informações do Brasil e do trabalho de catequese e colonização que aqui ao seu tempo se fazia, e até a sua Gramática da língua mais usada na costa do Brasil (Coimbra, 1596) estão manifestamente revelando no piedoso jesuíta uma vocação de escritor. Foi seguramente um poeta, menos, porém, nestas obras, a que apenas salva a ingenuidade da intenção e a pureza do sentimento que lhas inspirou, que pelo seu ardente e esquisito sentimento do divino e profunda simpatia com o gentio cuja se fez apóstolo. A sua obra poética, a sua criação é, com a sua puríssima vida, toda votada ao ideal da sua vocação, esse apostolado, que foi simultâneo um milagre de entendimento e de ingenuidade. Quanto às suas composições poéticas, essas apenas lhe autorizam a menção do nome, por outros e melhores títulos glorioso, entre os nossos primitivos versejadores. São tanto literatura como os diversos catecismos bilíngües escritos no período colonial.
Os prosistas I. - Portugueses
A prosa portuguesa chamada, não se sabe ao certo por que, de clássica é do século XVI. Não são, porém, dessa era, mas da seguinte, os seus mais acabados modelos. Apreciada sem os comuns preconceitos do casticismo, verifica-se não atingiu ainda então a expressão cabal e perfeita de um pensamento que por largo e humano merecesse viver.
Desde o século anterior, o sentimento português com as suas especiais qualidades exprimiu-se em magníficas formas poéticas que iniciavam o peculiar lirismo nacional e entravam a dar à poesia portuguesa a sua distinção. Quiçá essa raça sentimental e poética carecia de um pensamento tão particular quanto o era o seu sentimento. Não se lhe encontra a expressão na prosa. O seu foi aliás sempre mesquinho e de repetição. Faltou-lhe imaginação criadora, poder de generalização, faculdades filosóficas. A prosa, a linguagem apropriada ao revelar ficou-lhe em todo o tempo inferior à poesia. Mesmo no período apelidado áureo da literatura portuguesa, a prosa vacilou entre o «estilo metafísico bárbaro dos rudes escritores do século XV», segundo a qualificação de Herculano, e o falso polimento culto do século XVII. Sincretizam-se as duas feições ainda nos melhores escritores dessa época, deparam-se-nos ambas sem grande esforço de procura nos mais afamados.
No Brasil, desde que se começou a escrever prosa a que já possamos chamar de literária, foram justamente os defeitos dessa prosa portuguesa, a dureza e simultaneamente o amaneirado do frasear, o inchado e o retorcido da expressão, com o sacrifício intencional da sua correnteza e naturalidade, que predominaram. Quando aqui se começou a fazer prosa, a feição dominante da portuguesa era o gongorismo, o hipérbaton, as construções arrevesadas e rebuscadas, os trocadilhos. Um estilo presumidamente poético ou eloqüente, mas de fato apenas túmido e enfático. Era esse o estilo culto do qual o padre Vieira, inconsciente de que era por muito o seu, dizia, praticando-o na sua mesma censura: «Este desventurado estilo de que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, e os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro boçal e muito cerrado.» Se tal era ainda nos melhores escritores da Metrópole e estilo literário da época em que se começou a escrever no Brasil, que podia ele ser na grossa colônia nascente?
Do século XVI escrito no Brasil, se não por brasileiro nato, por brasileiro adotivo, nacionalizado por longa residência no país e enraizamento nele por família aqui constituída e bens aqui adquiridos, só nos resta um livro, o Tratado descritivo do Brasil, por Gabriel Soares de Sousa, terminado em 1587. Nem pelo estímulo que o originou, nem pelo seu propósito, nem pelo estilo é o livro de Gabriel Soares obra literária. Era, como diríamos hoje, um memorial de concessão apresentado ao Governo, como justificativa dos favores que para a sua empresa de exploração do país lhe pedia o autor. A obra, porém, lhe excedeu o propósito. Deu a este memorial desusada extensão e uma amplitude que o fez abranger a história e a geografia, no seu mais largo sentido, da grande colônia americana então sob o domínio espanhol. A sinceridade da sua longa, minuciosa e exata informação não chegam a prejudicar-lhe os gabos e encarecimentos da terra, que no forasteiro aclimado revêem uma viva e tocante afeição ao seu exótico país de adoção, onde passara da pobreza à abastança, a que consagrara o melhor da sua existência e atividade, onde amara e fora amado, fizera família e iria morrer na busca aventurosa e dura das suas riquezas nativas. Podíamos portanto adotá-lo por nosso se acaso este simpático feitio de sua obra não revisse também o propósito de empreiteiro de facilitar-se a mercê impetrada, justificando-a sobejamente com a notícia interesseira da terra que se propunha a explorar.
Como não era um letrado e a sua «tenção, conforme declara, não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem», e não esperava «tirar louvor desta escritura», saiu-lhe a obra, embora rude de feitura e pouco castigada de linguagem, menos eivada dos vícios literários do tempo, e, por virtude do próprio assunto, muito mais interessante e proveitosa ainda hoje do que a maior parte das que então mais classicamente se escreviam, sermonários, vidas de santos, crônicas de reis, de príncipes e magnates, livros de devoção e milagrices.
Nunca publicada antes que o fizesse sem ainda lhe saber o autor, em 1825, a Academia Real das Ciências de Lisboa, a obra de Gabriel Soares, sem embargo de inédita, não passou desapercebida aos curiosos do seu objeto, imediatos ou posteriores ao inteligente e laborioso reinol. Se a não compulsou o nosso primeiro cronista nacional, Frei Vicente do Salvador, conheceram-na e versaram-na o clássico autor dos Diálogos de vária história, Pedro de Mariz, Jaboatão, o perluxo cronista franciscano, Simão de Vasconcelos, o não menos difuso e não menos gongórico cronista jesuíta, o bom autor da Corografia brasileira, Aires de Casal, e depois, mas ainda em antes dela impressa, outros historiadores e noticiadores do Brasil, Roberto Southey, Ferdinand Denis, Martius. As numerosas cópias manuscritas (Varnhagen dá notícia de vinte) que sem embargo do seu volume (de mais de trezentas páginas impressas in 8º) desta obra se fizeram, indicam que se permaneceu inédita não foi porque a houvessem por desinteressante ou somenos. Somente o suspicaz ciúme com que a metrópole evitava a divulgação das suas colônias pode explicar assim ter permanecido obra de tanta valia.

Gabriel Soares de Sousa, nascido em Portugal pelos anos de 1540, veio para o Brasil pelos de 1565 a 1569. Na Bahia estabeleceu-se como colono agrícola. Ali casou e prosperou a ponto de nos dezessete anos de estada se fazer senhor de um engenho de açúcar, e abastado, como do seu testamento se depreende. Ganhando com a fortuna posição, foi dos homens bons da terra e vereador da Câmara do Salvador. Um irmão seu que, parece, o precedera no Brasil havia feito explorações no sertão de São Francisco, onde presumira haver descoberto minas preciosas. Falecido ele, quis Gabriel Soares prosseguir as suas explorações e descobrimentos. Com este propósito passou à Europa em 1584, a fim de solicitar da Corte da Madri autorização e favores para o seu empreendimento de procura e exploração de tais minas. Por justificar os seus projetos e requerimentos, e angariar-se a boa vontade dos que podiam fazer-lhe as graças pedidas, nomeadamente do Ministro D. Cristóvão de Moura, redigiu nos quatro anos de 1584 a 1587 o longo memorial, como ele próprio lhe chamou, que conservado inédito até o século passado, foi nele publicado sob títulos diferentes, o qual constitui uma verdadeira enciclopédia do Brasil à data da sua composição.
Gabriel Soares, sujeito de bom nascimento se não fidalgo de linhagem, suficientemente instruído, sobreinteligente, era curioso de observar e saber, e excelente observador como revela o seu livro. Embora determinado por uma necessidade de momento, não foi este composto de improviso e de memória. Para o redigir serviu-se, como declara, das »muitas lembranças por escrito» que nos dezessete anos da sua residência no Brasil fez do que lhe pareceu digno de nota. Obtidas as concessões e favores requeridos, nomeado capitão-mor e governador da conquista que fizesse e das minas que descobrisse, partiu para o Brasil em 1591, com uma expedição de trezentos e sessenta colonos e quatro frades. Malogrou-se-lhe completamente a empresa, pois não só naufragou nas costas de Sergipe mas depois veio, com o resto da expedição que conseguira salvar do naufrágio e reconstituíra na Bahia, a perecer nos sertões pelos quais se internara. Seus ossos, mais tarde trazidos para a Bahia, foram e se acham sepultados na capela-mor da igreja do mosteiro de S. Bento, tendo sobre a lápide que os recobre o epitáfio: «Aqui jaz um pecador» segundo o disposto no seu testamento. Deste documento induz-se que era homem abastado, devoto, nimiamente cuidadoso da salvação da sua alma, mediante esmolas, obras pias, missas e quejandos recursos que aos católicos se deparam para o conseguir.
Não é propriamente a obra de Gabriel Soares literária, nem pela inspiração, nem pelo propósito, nem pelo estilo. Só o é no sentido, por assim dizer material, da palavra literatura. O estilo é, como pertinentemente mostrou Varnhagen, aliás achando-lhe encanto que lhe não conseguimos descobrir rude, primitivo e pouco castigado, mas em suma menos viciado dos defeitos dos somenos escritores contemporâneos, mais desartificioso do que o começavam a usar os seus coevos, como de homem que não fazia literatura e não cuidava de imitar os que a faziam.
É grande, porém, o mérito especial dessa obra. Varnhagen se o encareceu não o exagerou demasiado escrevendo, ele que mais do que ninguém a estudou e conheceu: «Como corógrafo o mesmo é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussin; em topografia ninguém melhor do que ele se ocupou da Bahia; como fitólogo faltam-lhe naturalmente os princípios da ciência botânica; mas Dioscórides ou Plínio não explicam melhor as plantas do velho mundo que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas. A obra contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em Sevilha em 1590, com o título de História natural e moral das Índias e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma e assuntos se possa comparar à de Soares, é-lhe muito inferior quanto à originalidade e cópia de doutrina. O mesmo dizemos das de Francisco Lopes de Câmara e de Gonçalo Fernandez de Oviedo. O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não tratou instintivamente, no fim do século passado, da zoologia austro-americana melhor que o seu predecessor português; e numa etnografia geral de povos bárbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, o que nos legou o senhor do engenho das vizinhanças de Jequiriçá. Causa pasmo como a atenção de um só homem pôde ocupar-se em tantas cousas «que juntas se vêem raramente», como as que se contêm na sua obra, que trata a um tempo, em relação ao Brasil, de geografia, de história, de topografia, de hidrografia, de agricultura entretrópica, de horticultura brasileira, de matéria médica indígena em todos os seus ramos e até de mineralogia». Não é excessivo este juízo, e quem o emitia tinha competência para o fazer.
Um outro português, o padre Jesuíta Fernão Cardim, que também viveu no Brasil, deixou dois escritos de pouco tomo, pelos quais tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história da nossa literatura como um dos seus primitivos escritores. Menores são ainda que os de Gabriel Soares os seus títulos a pertencer à nossa literatura. O a todos os respeitos mais considerável e melhor dos seus dois escritos são duas cartas que desde o Brasil endereçou ao Provincial da Companhia em Portugal, recontando-lhe, miudamente, e de modo verdadeiramente interessante, uma viagem de inspeção jesuítica por algumas de nossas capitanias. Varnhagen, que as descobriu, publicou-as em 1847 com o título factício de Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, etc., desde o ano de 1583 ao de 1590. Embora documento interessantíssimo para o estudo das missões jesuíticas e da mesma vida colonial no primeiro século, não tem a obra de Fernão Cardim, se obra se lhe pode chamar, o interesse bem mais geral, a importância e a valia da de Gabriel Soares. A sua inclusão na nossa literatura é tão legítima como o seria a de toda a correspondência jesuítica daqui desde Nóbrega até o padre Antônio Vieira, e ainda além. No desenvolvimento da nossa literatura não teve esta de Fernão Cardim sequer a parte que é lícito atribuir à de Gabriel Soares, pelo que desta aproveitaram os posteriores autores brasileiros.
Outro escrito que se lhe imputa com fundados motivos mas sem absoluta certeza é a monografia, como lhe chamaríamos hoje. Do princípio e origem dos índios do Brasil e dos seus costumes, adorações e cerimônias, título também factício.
Pertence a esta primeira fase da literatura colonial e a mesma sorte destes, o curioso escrito Diálogos das grandezas do Brasil, descobertos e divulgados por Varnhagen.
Ignora-se-lhe ainda hoje o autor. Ao invés do que primeiramente supôs Varnhagen, que o atribuiu a brasileiro, nomeadamente a Bento Teixeira, o poeta da Prosopopéia, deve de tê-lo escrito em português. Mas um português, como tantos aqui houve, e dos quais é Gabriel Soares ótimo exemplar, naturalizado por longo estabelecimento na terra, afeiçoado a ela, identificado com ela, a ponto de tomar-lhe calorosamente a defesa contra um patrício recém-chegado e de exagerar-lhe as excelências como um zeloso patriota. Quem quer que fosse, era homem instruído, grande conhecedor do Brasil, simpaticamente curioso dos seus aspectos naturais e sociais e de todas as exóticas feições da nova terra. Instruído, esclarecido e judicioso, as suas muitas observações sobre a administração, os hábitos, a economia e mais faces do país, são geralmente bem feitas e acertadas. Algumas surpreendem-nos pela agudeza e perspicácia. Tais são, em 1618, apenas passado um século do descobrimento e não acabado ainda o da colonização, os seus reparos da indolência, indiferença e índole afidalgada dos moradores do Brasil que tudo fiavam do escravo, escusando-se ao trabalho. Mais notável é ainda que tenha desde então verificado a influência civilizadora da América na Europa, ou ao menos no europeu, para cá imigrado e aqui tornado, graças à riqueza adquirida e à sua indistinção de classes, de rústico em policiado. Realmente a parte da América na civilização, na polícia, como diziam os nossos clássicos, e escreve o autor dos Diálogos das grandezas, é muito maior do que se não pensa. São milhões os europeus que tendo para ela vindo de todo broncos, grosseiramente trajados, sem nenhuns hábitos de asseio, conforto ou civilidade, e com as manhas inerentes à sua miserável posição na mãe pátria, logram com a fortuna crescer de situação e emparelhar com as melhores classes americanas. Destas tomam estilos de vida, imitadas por elas das melhores da Europa, das quais acolá os preconceitos de casta, aqui desconhecidos, os traziam afastados. A transformação começada pelo que podemos chamar o hábito externo se completa pelo convívio dessas classes, cujo comércio lhes é facilitado pela fortuna e posição aqui facilmente adquiridas. Muitíssimos além desta educação indireta, a fazem formalmente freqüentando as nossas escolas ou particularmente tomando mestres, o que lhes seria muito mais difícil nos seus países de origem.
E a América restitui à Europa desbastados da sua grosseria originária, limpos, no rigor da expressão, civilizados, polidos, com o melhor feitio físico e social, milhões de sujeitos que lhe vêm boçais e crassos. Devolve-lhe cavalheiro quem lhe chegou labrego. É admirável que este fato interessantíssimo não tenha escapado ao perspicaz observador dos Diálogos das grandezas, que, notando-o, do mesmo passo o atesta aqui desde o começo do século XVII. «O Brasil é praça do mundo, assenta-se ele, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal nome, e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honra dos termos de cortesia, saber bem negociar e outros atributos desta qualidade». E como seu interlocutor lhe retorquisse que não devia de ser assim, e antes pelo contrário, pois o Brasil se povoara primeiramente com «degradados e gente de mau vier» e por conseguinte pouco político, pois carecendo de nobreza lhe faltava necessariamente a polícia, Brandônio, pseudônimo com que se disfarça o autor, retruca-lhe: «Nisso não há dúvida, mas deveis saber que esses povoadores, que primeiramente vieram povoar o Brasil, a poucos lanços pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar, e os filhos de tais já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos com se ajuntarem a isso o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgas, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobres. Então como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do clima, ou do bom céu de que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela>
Literariamente estes Diálogos, sem serem romance ou novela, são uma ficção, a primeira escrita no Brasil. O processo de diálogos, já o notou Varnhagen, estava então em moda em Portugal, para a exposição de idéias e noções de ordem moral, política ou econômica. São principalmente desta ordem as que intenta divulgar o autor deste, com o propósito manifesto de propaganda, como hoje diríamos, do Brasil, por um português que laços diversos de interesse e amor apegariam à terra, da qual fala carinhosamente. Pela língua e estilo, embora não sejam nem uma nem outro primorosos, são estes Diálogos o que melhor nos legou a escrita portuguesa no Brasil nesta primeira fase da produção literária aqui. Por ambos é de um quinhentista que, justamente por não ser um literato, não trazia ainda a eiva do século literário que começava. Escrevendo, com interesse e amor, de cousas novas, inéditas, bem conhecidas suas, fê-lo com maior objetividade, inteligência e simpleza do que era comum em livros portugueses contemporâneos. E, ao menos para nós brasileiros, mais interessantemente. Em nenhum outro sobre o Brasil e aqui escrito na mesma época ou ainda imediatamente depois, se encontram tantos testemunhos de mestiçagem que aqui se começava a operar, e já ia mesmo relativamente adiantada, da comunhão das gentes diversas que neste país se encontraram. E como ao cabo é tal mestiçagem, não só fisiológica senão psicológica também, que distinguirá o grupo brasileiro, dar-lhe-á feição própria e atuará a sua expressão literária, são os Diálogos das grandezas um estimável subsídio da nossa história literária.

II. Brasileiros

O primeiro brasileiro conhecido que escreveu prosa num gênero literário, qual é a história, e de feitio a se lhe poder qualificar a obra de literária, foi Frei Vicente do Salvador. É por ele que começa a nossa literatura em prosa.
Vicente Rodrigues Palha, como no século se chamava Frei Vicente, segundo as escassas notícias que dele temos, nasceu em Matuim, umas seis léguas ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Como a maioria dos homens instruídos da época, estudou com os jesuítas no seu colégio de São Salvador, e depois em Coimbra, em cuja Universidade se formou em ambos os direitos e doutorou-se. Voltando ao Brasil ordenou-se sacerdote, chegou a cônego da Sé baiana e vigário-geral. Aos trinta e cinco anos fêz-se frade, vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome pelo de Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba, residiu em Pernambuco e cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o seu primeiro prelado. Tornou posteriormente a Pernambuco, onde leu um curso de artes, no convento da ordem, em Olinda. Regressando à Bahia aí foi guardião do respectivo convento, em 1612. Eleito em Lisboa custódio da Custódia franciscana brasileira, no mesmo ano de 1612 teve de voltar a Pernambuco. Após haver estado em Portugal, regressado novamente à Bahia, como guardião, tornado ao Rio e mais uma vez à Bahia, aí faleceu entre os anos de 1636 a 1639. Estas diferentes viagens, este trato de diversas terras e populações devia ter-lhe completado a educação escolar com aquela, a certos respeitos melhor, que se faz no comércio do mundo. A ela podemos atribuir a singular objetividade do seu estilo. Foram grandes e bons os seus serviços à sua ordem e à sua pátria por vários lugares e postos da sua atividade. Passou por excelente religioso e bom letrado. A sua obra faz acreditar merecida esta reputação.
Essa obra, História do Brasil, concluída a 20 de dezembro de 1627, ficou inédita até 1888. Escreveu-a o bom e douto frade a pedido, poderíamos dizer por encomenda, de Manoel Severim de Faria, um dos mais considerados eruditos portugueses contemporâneos, que lhe prometera publicá-la à sua custa.
Como ninguém melhor que Varnhagen conheceu o Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares, ninguém melhor que o sr. Capistrano de Abreu conhece a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, cujo foi se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen, o divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente predecessor na historiografia brasileira, julga assim o sr. Capistrano de Abreu a obra do frade baiano: «Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido -um mazombo, se de algum corpo se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta idéia como o século XVIII é a maturação.
«A sua História não repousa sobre os estudos arquivais. Haveria dificuldade em examinar arquivos? Ou não era o seu espírito inclinado a leitura penosa de papéis amarelecidos pelo tempo? Daí certa laxidão no seu livro: muitos fatos omitidos que hoje conhecemos e que ele com mais facilidade e mais completamente poderia ter apurado, contornos enfumados, datas flutuantes, dúvidas não satisfeitas. Até certo ponto a História de Frei Vicente é comparável à geografia do meritíssimo padre Mateus Soares, um século mais tarde: correta onde determinava posições astronômicas; em outros pontos fundada sobre roteiros de bandeirantes e mineiros.
Mas esta pecha resgata-a por qualidades superiores. A História possui um tom popular, quase folclórico; anedotas, ditos, uma sentença do bispo de Tucumã, uma frase do Rei do Congo, uma denominação de Vasco Fernandes. Mais ainda: vê-se o Brasil qual era na realidade, aparece o Branco, aparece o Índio, aparece o Negro; o preto Bastião percebe-se que fez rir a boas gargalhadas o nosso autor. Informações por que suspirávamos, e que não esperávamos encontrar, ele as oferece às mãos cheias, ora num traço fugitivo, ora demoradamente: leia-se por exemplo o último capítulo do livro IV, relativo a construção de engenhos: antes nada se sabia a tal respeito. Há também o pensamento que a prosperidade do Brasil está no sertão, que é preciso penetrar o oeste, deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao transoceanismo: e daí a porção de roteiros que debalde se procuraria em outras obras.»
Dos mesmos méritos que do seu ponto de vista de historiador lhe verifica o sr. Capistrano de Abreu, pode concluir a crítica literária para lhe avaliar os quilates nesta espécie. É um livro que poderíamos chamar de clássico se não nos agarrássemos à estreita concepção gramatical e retórica que o vocábulo tomou em Portugal. A sua língua correta, expressiva e até às vezes colorida, mais porventura do que o costuma ser a dos escritores seus contemporâneos, tem sobre a destes a superioridade da singeleza e da naturalidade, virtudes neles raras. E poderíamos acrescentar da familiaridade, como o mostram o já aludido simile da exploração dos portugueses limitada à costa com o arranhar das praias pelos caranguejos, e que tais, tirados das novidades que à sua pena inteligente ofereciam os aspectos inteiramente inéditos do país que historiava e descrevia. É muito mais agradável de ler que Gabriel Soares e para nós brasileiros ao menos do que muitos dos chamados clássicos portugueses, cronistas como ele. Tem espírito, tem chiste, quase poderíamos dizer que às vezes tem até humour. Há sobretudo nele uma desenvoltura de pensar e de dizer que aumentam o sabor literário à sua História. Sirvam de exemplo estas suas reflexões sobre o nome do Brasil: É porventura por isso (refere-se à troca do nome de Terra de Santa Cruz pelo de Brasil), ainda que ao nome de Brasil ajuntarem o de estado e lhe chamem estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.
«Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que hão feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores da Guiné por uma caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil que não quiseram intitular. Nem depois da morte de el-rei Dão João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos.»
É do mesmo espírito e tom a sua observação, já atrás citado do desapego dos moradores à terra.
Não é só historiador que reconta, observa e reflexiona, é também moralista avisado que sem biocos fradescos, compara, aprecia e generaliza, e sabe fazê-lo com graça natural e frase que desta mesma naturalidade tira a elegância. São outro documento destes seus dotes, e até da sua perspicácia psicológica, estas suas finas observações sobre a obra da catequese, com que também inculca o que era no fundo a superficial cristianização do selvagem. Soube o seu espírito realista discernir, e dizer sem os rebuços que lhe punham os jesuítas, alguns motivos da passividade com que o índio se prestava a certas práticas religiosas. É demais dizê-lo com uma deliciosa sem-cerimônia. «Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja e quando lhes tangiam o sino, à doutrina ou à missa, corriam com um ímpeto e estrépido que pareciam cavalos, mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são muito amigos de novidades; como dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente das endoenças para se disciplinarem, porque o tem por valentia. E tanto é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente uma semana santa, chegando à aldeia nas oitavas da Páscoa e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então presidia, dizendo: «Como havia de haver no mundo que se disciplinasse até os meninos e ele sendo tão grande e valente, como de feito era, ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar.» Respondia-lhe eu «que todas as coisas tinham seu tempo, e que nas endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoutes que Cristo senhor nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe que fizesse o que quisesse, com que logo se foi açoutar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festas metendo de vinhos nas ilhargas.»
É precioso o texto, assim pela arguta observação de certos característicos hoje muito conhecidos do selvagem, a sua inconstância de propósito, o seu amor da novidade, o seu ponto de honra de valentia bruta, como pela língua que sendo boa, conforme a melhor do tempo, escapa entretanto aos feios vícios desta do empolado, das construções arrevesadas e do estilo presumidamente pomposo. A sua frase é ao contrário chã, sem artifício e já, como viria legitimamente a ser brasileira, quando não se propusesse indiscretamente a arremedar a portuguesa, menos invertida, mais direta do que esta. Mais um exemplo para acabar com a comprovação das qualidades do nosso primeiro prosador. Descreve-nos no cap. XLIV a primeira missão jesuítica à Ibiapaba, dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira.
Estes se partiram de Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete em o mês de janeiro, com alguns gentios das suas doutrinas, ferramenta e vestidos, com que os ajudou o Governador para darem aos bárbaros. Começaram seu caminho por mar e prosseguiram ao longo da costa cento e vinte léguas para o norte o Rio de Jaguaribe, onde desembarcaram. Daí caminharam por terra e com muito trabalho outras tantas léguas até os montes de Ibiapaba, que será outras tantas aquém do Maranhão, perto dos bárbaros que buscavam, mas acharam o passo impedido de outros mais bárbaros e cruéis do gentio tapuia, aos quais tentearam os padres pelos índios seus companheiros com dádivas, para que quisessem sua amizade, e os deixassem passar adiante, porém não fizeram mas antes mataram os embaixadores, reservando somente um moço de dezoito anos que os guiasse aonde estavam os padres, como o fez seguindo-os muito número deles. Saindo o padre Francisco Pinto da sua tenda, onde estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor e benevolência os quisesse quietar, e os seus poucos índios com flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça que lha quebraram e o deixaram morto. O mesmo quiseram fazer ao padre Luís Figueira, que não estava longe do Companheiro, mas um moço da sua companhia, sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: «Padre, padre, guarda a vida» e o padre se meteu à pressa em os bosques, onde, guardado da Divina Providência, o não puderam achar, por mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos que acharam dos ornamentos que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos e ferramenta para darem, com o que teve lugar o padre Luís Figueira de recolher seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar ao lugar daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido, a cabeça quebrada e desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o e levando-o. E composto o defunto em uma rede em lugar de ataúde lhe deram sepultura ao pé de um monte, que não permitia então outro aparato maior o aperto em que estavam; porém nem Deus permitiu que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martins Soares, que agora é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em uma igreja, onde não só os portugueses e cristãos, que ali moram, é venerado, mas ainda dos mesmos gentios.»
As três outras versões deste fato existentes na literatura da nossa língua, principalmente a dos padres Antônio Vieira e José de Morais, fornecem-nos oportunidades de avaliarmos de Frei Vicente do Salvador como escritor. Neste passo ao menos não lhe sai mal o confronto, mesmo com o do muito maior deles, o grande exemplar dos melhores escritores portugueses, Vieira. Ao passo que a dos dois jesuítas é nesse estilo que o padre Manuel Bernardes, com tanto sal e a propósito chamou de «fraldoso e dilatado», a do modesto frade brasileiro, embora sem a correção gramatical daqueles, é simultaneamente precisa, sucinta e sóbria, sem sacrifício da clareza. Do que sabemos de Frei Vicente do Salvador e do que nos revela a sua obra, foi ele, no melhor sentido do qualificativo, de ânimo ingênuo. Como escritor é este ainda o que mais lhe assenta, e que o sobreleva, com outros dons já ditos, a todos os escritores do Brasil, nacionais ou portugueses, nesta primeira fase da literatura aqui. Se houvéramos nós brasileiros de fazer a lista dos nossos clássicos, isto é, daqueles escritores que sobre bem escreverem a sua língua, conforme o uso do seu tempo, melhor nos representassem o sentimento, o entendimento e a vontade que faz de nós uma nação, o primeiro dessa lista seria por todos os títulos Frei Vicente do Salvador com a sua História do Brasil.
É ele o único prosista brasileiro da fase inicial da nossa literatura.
A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou pelo resto do século. À copiosa produção poética desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país, já oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas, maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. Informa o bibliógrafo português Barbosa Machado, escrevendo aliás um século depois, que um dos poetas dessa época, que também foi funcionário real e militara pela metrópole na colônia, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira, deixara manuscrita uma Descrição topográfica, eclesiástica, civil e natural do Estado do Brasil. Esta obra não veio jamais a lume e ninguém a conhece. A julgar pelo título seria uma repetição no século XVII do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares, do século XVI, com a diferença de ser feita por brasileiro, porventura mais completa e com certeza piorada pela presunção literária e pelo estilo gongórico do autor, que era o da época.
Escreveu mais Vieira Ravasco em Discurso político sobre a neutralidade da coroa de Portugal nas guerras presentes das coroas da Europa e sobre os danos que da neutralidade podem resultar a essa coroa e como se devem e podem obviar (1692?) e remédios políticos com que se evitarão os danos que no discurso antecedente se propõem (datado da Bahia, 10 de junho de 1693). Estes dois papéis, respectivamente de 13 e 16 folhas, apareceram em cópia moderna na Exposição de História do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881. À falta de outros méritos, esses escritos fariam de Vieira Ravasco o primeiro em data dos nossos publicistas.
Exceto estes escritos de Ravasco, e aqueles outros supostos ou apenas referidos, os quais aliás não são propriamente literários, a única prosa que se fazia na colônia, afora a da conversação, era a dos sermões.Admitindo, mais por seguir o uso que por convicção, seja o sermão um gênero literário, e haja de fazer parte da história da literatura, parece incontestável que só o será e só caberá nela quando tenha sido posto por escrito. Sem isto pertenceria quando muito à literatura oral, e desta não há história.
O sermão, porém, teve no passado uma importância, mesmo literária, muito grande, muito maior do que tem hoje. Social ou mundanamente foi um divertimento, um espetáculo que, conforme o pregador, podia despertar interesse e atrair concurso tão alvoroçado ou numeroso de ouvintes como outros quaisquer do tempo: um auto de fé, uma corrida de touros, um jogo de canas, uma representação teatral ou alguma solenidade da Corte. Mas, como espetáculo gratuito e aberto ao povo, era mais concorrido do que estes, só a abastados ou favorecidos acessíveis. Tanto mais que não constituía o sermão só por si o espetáculo, mas era apenas um «número» nos que a igreja oferece aos seus fiéis, com a prodigalidade, a pompa, a encenação semipagã das suas pitorescas cerimônias. Ajudava, pois, o sermão a sociabilidade de uma gente de natureza retraída e triste, qual a portuguesa, em tempo em que à sociabilidade se deparavam poucos ensejos de exercer-se. Servia de elemento de instrução pela discussão de problemas morais e noções de toda a ordem, que ao redor deles forçosamente surgiam, e mais pela forma de os expor. De um ou de outro modo, excitavam as inteligências, punham e resolviam questões, assentavam ou retificavam opiniões, suscitavam emoções e forneciam, como os discursos acadêmicos ou parlamentares de hoje, temas às conversações. Foi a sua repetição importuna e corriqueira, a sua vulgarização, a trivialidade dessaborida e fatigante dos seus processos, dos seus estilos, dos seus «truques» a inópia do pensamento, invariavelmente o mesmo, que o alimentava, e da língua constantemente a mesma que falava, com o mesmo arranjo e corte do assunto, o mesmo aparelho de erudição, idênticos recursos retóricos, e até iguais entonações e gestos no orador, que acabaram com o sermão, como gênero literário estimável. Prejudicou-o também a sua cada vez mais crescente incoerência com os tempos. Foi um grande expediente de propaganda e edificação religiosa, e ainda moral, não só quando as almas eram mais sensíveis a tal recurso de lição oral bradada de cima de um púlpito, mas quando, sendo pouco vulgar a imprensa, e menos ainda a capacidade de leitura, encontrava o sermão nas massas analfabetas ou pouco lidas, ou ainda com poucas facilidades de ler, ouvintes numerosos e de boa vontade. Com a multiplicação dos livros, mesmo religiosos, à literatura parenética oral se foi substituindo a literatura piedosa escrita. Ceci tuera cela. E a decadência do sermão acompanhada com grande avanço pela da oratória sagrada, não diminuiu apenas a importância do gênero; teve ainda uma influência retrospectiva. Amesquinhou lançou no olvido os produtos do seu bom tempo.
Na língua portuguesa o único orador sagrado que porventura ainda tem leitores é o padre Antônio Vieira. Tem-nos aliás antes como clássico muito apreciado da língua, como exemplar de escrita vernácula e numerosa, que como professor de religião ou moral. Nem há já, mesmo entre as pessoas piedosas, se não são de todo ignaras, quem lhe sofra a filosofia inconsistente ou a ciência e erudição atrasadíssimas ainda para o seu tempo, além dos obsoletos e até ridículos processos retóricos. Na língua francesa também não há mais de três oradores sagrados com leitores. Bossuet, Massillon e Bourdaloue. Destes mesmo o que mais se lê, quiçá o único ainda em verdade lido, é Bossuet. Nenhum deles é, aliás, como também não foi Vieira, apenas orador sagrado. Foram personagens consideráveis no seu tempo, e, além de ações memoráveis, deixaram obras literárias pelas quais se recomendam e à sua obra oratória. São justamente tais ações, o papel que desempenharam e a influência que tiveram na sua época os dois maiores deles, Bossuet e Vieira, que mais que os seus méritos literários lhes fazem viver os sermões.
Nenhum dos sermonistas brasileiros coloniais exerceu no seu meio e tempo ação ou influência que se lhes refletisse nos sermões, dando-lhes a vida e emoção que ainda descobrimos nos de Vieira. Nenhum, também, em que pese aos seus excessivos elogiadores, possui qualidades essenciais ou formais que lhe dessem aos sermões publicados, -que os inéditos esses de todo não pertencem à literatura- aquilo que lhes não pôde emprestar a sua existência obscura.
Desses o que, parece, teve mais talento, melhor língua estilo e mais força oratória foi o padre Antônio de Sá (1620-1678), jesuíta, natural do Rio de Janeiro. Exerceu o Ministério do púlpito no Brasil e em Portugal e, parece, também ocasionalmente em Roma, ao mesmo tempo em que ilustrava o púlpito português o padre Vieira. Deste foi, como acontecia com todos os pregadores da época, discípulo e seguidor. Dos seus sermões, avulsamente publicados ainda em sua vida, e depois coligidos em 1750, se verifica que por alguns aspectos o foi superiormente. Para o nosso gosto atual, talvez sobrelevando ao mestre e êmulo no estilo nimiamente ornado e culto do tempo, e notavelmente de Vieira, com quem o nosso bairrismo literário o tem querido emparelhar. Nem pela cópia, número e mais excelência de linguagem, nem pelo teso, vigoroso e pessoal do estilo, nem pelo arrojo, riqueza e variedade da imaginação e dos tropos acompanha Antônio de Sá a Vieira, do qual é, ainda com valor próprio que se lhe não pode negar, pálido reflexo. Mas também o não acompanha no gongorismo, no abuso dos trocadilhos e menos no atrevimento e despejo de conceitos e comparações com que o celebrado orador português, no seu materialismo religioso, roça não raro pela chocarrice e pela indecência, senão pela blasfêmia. Não obstante os seus reais méritos, a boa qualidade da sua língua e estilo, mesmo o talento que revela em seus sermões, Antônio de Sá é apenas um nome que se encontra nas antologias didáticas e cuja obra, fora dos curtos trechos destas, ninguém mais lê e quase todos ignoram inteiramente.
É que de fato, a despeito do nosso catolicismo consuetudinário, os sentimentos que o inspiraram não têm mais a virtude de interessar-nos e comover-nos. E só vive a obra literária cuja emoção geradora persiste apesar do tempo, sempre capaz de provocar em nós emoção idêntica. Isto é que o sermão, quando se não misturam nele, como nos de Bossuet ou Vieira, interesses verdadeiramente humanos, ou bocados da nossa vida e das nossas paixões, quando é apenas expediente de edificação religiosa, não mais consegue. Perdeu, pois, o essencial dos atributos literários: o dom da emoção.
Numerosos nomes de pregadores podem, no período colonial, juntar-se ao do padre Antônio de Sá e os nossos historiadores literários não se têm poupado a fazê-lo. Uns viram as suas obras publicadas, as de outros o foram posteriormente. Alguns são apenas mencionados por noticiadores, às vezes posteriores de um século, o que não impediu fossem por aqueles julgados e elogiados, como se os houveram conhecido mais que por vagas notícias. Nem há como verificar as versões que uma vez inventadas vão sendo repetidas sem crítica por quantos do assunto têm escrito. Se o maior deles, como parece ter sido Antônio de Sá, sumiu-se de todo no recesso escuro de alguma livraria pública, onde apenas lhe freqüentem a obra insetos bibliófagos, e não há descobrir-lhes o influxo na mentalidade do seu tempo na sua literatura, parece inútil, ou vão alarde de facílima erudição, nomear os outros.
A oratória sagrada no Brasil foi sem dúvida, no período colonial e no início do nacional, uma revelação e porventura um estimulante, em estreitos limites aliás, da cultura do momento. Era uma das formas por que se manifestava a inteligência e cultura brasileira, principalmente eclesiástica. Mas como outras dessas formas de expressão, a poesia, a história, os panegíricos pessoais ou da terra, os escritos morais, tinham os sermões a mesma inferioridade de toda essa literatura convencional, retórica, sem alguma relevância de engenho, sentimento ou expressão. Só mais tarde, quando os oradores sagrados se fizeram também, sob a influência do momento histórico, oradores e até tribunos políticos, e exprimiam ou ressumavam as paixões nacionais na época da Independência, se nos deparam alguns, bem poucos aliás, cuja obra, somente por este aspecto, ainda não morreu de todo.

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