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Arapongas - Paraná
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Literatura Comparada e Tradução: relações amigáveis
As traduções foram (e ainda são) a forma mais fácil de acesso às obras primas da literatura mundial e uma das formas mais úteis de revelação de traços estilísticos e culturais da produção artística da humanidade. Dentro da história da literatura receptora, a “personalidade do tradutor deve ser perfeitamente conhecida: associada a elementos sociológicos e comerciais (demanda do público), explica às vezes a escolha do texto; explica sempre o valor e a orientação da tradução” (BRUNEL: p.31-33), terreno propício para o trabalho do comparatista. Quando consideramos que a tradução literária, além de processo criativo e intelectual, ocorre em um contexto histórico e social específico, após ser transplantada de um outro contexto histórico e social específico, fica claro que duas línguas, duas culturas e duas sociedades estão aí envolvidas, ensejando para o pesquisador a oportunidade de cotejar os dois ‘produtos’, aquilatar em que medida as transposições influenciaram ou não a cultura receptora, em que medida a cultura emissora afetou ou modificou a cultura receptora, e que ‘ajustes’ culturais foram eventualmente feitos; enfim, uma investigação da fortuna literária dos autores e obras, das fontes e influências.
Para o comparatista, considerar a tradução, os critérios utilizados para a sua confecção e o valor que se lhe dá, é tarefa das mais importantes; ver o que a tradução tem a dizer sobre fronteiras culturais (difíceis de serem claramente delimitadas) , sobre as diferenças culturais provocadas pelo movimento do texto no tempo e no espaço, pode representar um desafio formidável e gratificante; afinal de contas, “translation remains difficult, since the negotiation of cultural, temporal and linguistic differences – to mention only these – always takes place in a space which is never neutral.”
(ST.PIERRE:1997:423).
Independentemente do território que acolhe a tradução, o comparatista pode julgá-la pela necessidade que a fez nascer, pela relevância que ela adquire no patrimônio literário ao qual ela se integrou, pela sua popularidade e sua influência; pode examinar de que forma ela contribui para o desenvolvimento do comércio internacional de ‘produtos literários’. (COUTINHO & CARVALHAL:1994:324). A tradução é vista pelo comparatista sempre em conexão com seu contexto histório, ideológico e estilístico; mais ainda: a tarefa do comparatista consiste em mostrar que ela não é apenas “multiplicação aparente do número de leitores, mas escola de invenção e de descoberta” (BRUNEL:1983:137), porque na sua base está a idéia de comunicação entre culturas através da linguagem. (Aí deve residir também a pertinência dos trabalhos de Evan-Zohar e o interesse que neles têm os comparatistas).
A noção de comércio internacional, por mais curiosa que possa parecer se aplicada ao campo de literatura, faz pleno sentido quando tomada metaforicamente no campo da tradução: quando duas línguas, duas culturas e duas sociedades estão envolvidas, pode-se falar de tendências que seguem as linhas globais de comércio internacional; pode-se falar de uma ‘economia política’ (VENUTI: 1992:139) da tradução, no sentido de que se trata de um intercâmbio cultural, de um diálogo entre culturas onde a tradução age como mediadora de relações interculturais. E se falamos em ‘economia política’ em tradução, podemos também falar em tendências globais de comércio internacional, o que, por sua vez, traz à mente a idéia de hegemonia cultural. O tema é instigante para os comparatistas e para aqueles interessados em estudar as influências da tradução em países desenvolvidos ou em países em desenvolvimento. Aqui é curioso notar que a influência da produção intelectual do hemisfério Sul é quase nula no hemisfério Norte, ao passo que as línguas e culturas do primeiro sempre foram muito afetadas pelas línguas e culturas hegemônicas do segundo.
Nesse sentido, conforme o pensamento de Richard Jacquemond, ”It is no surprise that the global translation flux is predominantly North-North, while South-South translation is almost nonexistent and North-South translation is unequal: cultural hegemony confirms, to agreat extent, economic hegemony.” (VENUTI:1992:139)
Assim, a tradução, ao colocar em jogo conceitos de diferença cultural, histórica, social e até mesmo política, produz ou detecta relações de alteridade através da língua, evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e cultura.
Em seu ensaio “The Language of Cultural Difference: Figures of Alterity in Canadian Translation” Sherry Simon afirma: “The humanist vision of translation as peaceful dialogue among equals, as the egalitarian pursuit of mutual comprehension, is only one of a number of paradigms which account for the dynamics of translation. If translation is taking on increased importance today as a way to conceptualize processes of cultural transmission, it is because we recognise that it participates in many different ways in the generation of new forms of knowledge, new textual forms, new relationships to language." (VENUTI:1992:160).
Foi essa percepção que mudou drasticamente os caminhos trilhados pelos recentes estudos de tradução. Com o surgimento das teorias feministas e do pós-colonialismo nossas intuições sobre conhecimento cultural e diferença cultural foram abaladas; com a crescente ênfase no controle coletivo do conhecimento cultural, o papel desempenhado pela ideologia - o que Antonio Gramsci chama de ‘hegemonia’ - na construção e manutenção desse conhecimento cultural e no controle das transferências através de barreiras culturais, tem assumido importância cada vez maior. Questões são colocadas: qual é o impacto dos sistemas culturais e políticos sobre a tradução? Qual o impacto do sistema cultural-alvo sobre aquilo que é traduzido e por que e como a tradução é usada dentro do sistema?
Ao pesquisador de estudos da tradução e ao comparatista, esses são questionamentos que recebem análise aprofundada, especialmente agora que muitas populações até então marginalizadas e silenciadas começam a contar sua história às culturas hegemônicas que as haviam dominado.
Uma cultura dominada traduzirá muito mais de uma cultura hegemônica do que o reverso. Os autores de uma cultura dominada que sonham ganhar uma ampla audiência tenderão a escrever para tradução em uma língua hegemônica, o que implicará ajustar-se de alguma forma aos estereótipos da cultura hegemônica que, por sua vez, tende a traduzir obras de autores de uma cultura dominada que se ajustem às noções preconcebidas da última, isto é, traduções em uma cultura hegemônica tendem a preservar os estereótipos das culturas dominadas; mais ainda: as traduções de uma cultura dominada incorporadas a uma cultura hegemônica serão vistas como difíceis, misteriosas e mesmo esotéricas, ou seja, de difícil interpretação; ao passo que uma cultura dominada tenderá a traduzir de uma cultura hegemônica de forma a que a obra seja acessível às massas (ROBINSON:1997:235).
A questão da hegemonia é, de fato, um dado relevante quando se examina a produção intelectual do globo: as línguas e culturas hegemônicas do Norte são altamente influentes no desenvolvimento das línguas, culturas e atividades sociais do Sul e as implicações disso nos processos de tradução não podem ser desprezadas, já que a história colonial e, sobretudo pós-colonial mostra que a desigualdade é característica típica entre os países desenvolvidos e em países em desenvolvimento. E o crivo dos comparatistas nessa área deve revelar perspectivas muito ricas e muito material para reflexão.
Tão importantes são os estudos da tradução atualmente que pesquisadores da área têm expandido suas teorias sobre o assunto e têm trilhado novos caminhos, associando o papel da tradução à ‘modelagem’ do sistema literário e à história das idéias, haja vista a profusão de estudos ligando a tradução à linguística, aos estudos literários, à história cultural, à filosofia, à antropologia. Susan Bassnett, pesquisadora de ambas as áreas - tradução e literatura comparada - chega a afirmar que “the current perspective [...] proposes instead that comparative literature be considered a branch of the much wider discipline that is Translation Studies.” (BASSNETT:1988:Preface).
Com tantas teorias novas, outras preocupações passaram a ocupar a mente dos tradutores; entre elas mencionemos certa dose de suspeita que foi gerada com relação à questão da intuição cultural - do ‘politicamente correto’- do que essa ou aquela palavra ou texto significa. Douglas Robinson dá seu conselho ao tradutor: “A first-world translator should never assume his or her intuitions are right about the meaning of a third-world text: a dictum for our times, overheard at a translators’s conference. By the same token, a male translator should never assume his intuitions are right about the meaning of a text written by a woman; a white translator about a text written by a person of color, and so on.” (1997:227)
Seguir os rastros das traduções para detectar essa nova ‘ordem mundial’ é certamente um desafio para aqueles interessados em confrontar literaturas.
Em “Literary History and Translation: an Indian View”, G.N.Deny traz à tona a relação entre literatura comparada e tradução, ao afirmar que “Comparative literature implies that between two related languages there are areas of significance that are shared just as there may be areas of significance that can never be shared. Translation can be seen as an attempt to bring a given language system in its entirety as close as possible to the areas of significance that it shares with another given language or languages. All translations operate within this shared area of significance. Such a notion may help us distinguish synonymy within one language and the shared significance between two related languages." (1997:397-405).
Para o comparatista, considerar a tradução, os critérios utilizados para a sua confecção e o valor que se lhe dá, é tarefa das mais importantes; ver o que a tradução tem a dizer sobre fronteiras culturais (difíceis de serem claramente delimitadas) , sobre as diferenças culturais provocadas pelo movimento do texto no tempo e no espaço, pode representar um desafio formidável e gratificante; afinal de contas, “translation remains difficult, since the negotiation of cultural, temporal and linguistic differences – to mention only these – always takes place in a space which is never neutral.”
(ST.PIERRE:1997:423).
Independentemente do território que acolhe a tradução, o comparatista pode julgá-la pela necessidade que a fez nascer, pela relevância que ela adquire no patrimônio literário ao qual ela se integrou, pela sua popularidade e sua influência; pode examinar de que forma ela contribui para o desenvolvimento do comércio internacional de ‘produtos literários’. (COUTINHO & CARVALHAL:1994:324). A tradução é vista pelo comparatista sempre em conexão com seu contexto histório, ideológico e estilístico; mais ainda: a tarefa do comparatista consiste em mostrar que ela não é apenas “multiplicação aparente do número de leitores, mas escola de invenção e de descoberta” (BRUNEL:1983:137), porque na sua base está a idéia de comunicação entre culturas através da linguagem. (Aí deve residir também a pertinência dos trabalhos de Evan-Zohar e o interesse que neles têm os comparatistas).
A noção de comércio internacional, por mais curiosa que possa parecer se aplicada ao campo de literatura, faz pleno sentido quando tomada metaforicamente no campo da tradução: quando duas línguas, duas culturas e duas sociedades estão envolvidas, pode-se falar de tendências que seguem as linhas globais de comércio internacional; pode-se falar de uma ‘economia política’ (VENUTI: 1992:139) da tradução, no sentido de que se trata de um intercâmbio cultural, de um diálogo entre culturas onde a tradução age como mediadora de relações interculturais. E se falamos em ‘economia política’ em tradução, podemos também falar em tendências globais de comércio internacional, o que, por sua vez, traz à mente a idéia de hegemonia cultural. O tema é instigante para os comparatistas e para aqueles interessados em estudar as influências da tradução em países desenvolvidos ou em países em desenvolvimento. Aqui é curioso notar que a influência da produção intelectual do hemisfério Sul é quase nula no hemisfério Norte, ao passo que as línguas e culturas do primeiro sempre foram muito afetadas pelas línguas e culturas hegemônicas do segundo.
Nesse sentido, conforme o pensamento de Richard Jacquemond, ”It is no surprise that the global translation flux is predominantly North-North, while South-South translation is almost nonexistent and North-South translation is unequal: cultural hegemony confirms, to agreat extent, economic hegemony.” (VENUTI:1992:139)
Assim, a tradução, ao colocar em jogo conceitos de diferença cultural, histórica, social e até mesmo política, produz ou detecta relações de alteridade através da língua, evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e cultura.
Em seu ensaio “The Language of Cultural Difference: Figures of Alterity in Canadian Translation” Sherry Simon afirma: “The humanist vision of translation as peaceful dialogue among equals, as the egalitarian pursuit of mutual comprehension, is only one of a number of paradigms which account for the dynamics of translation. If translation is taking on increased importance today as a way to conceptualize processes of cultural transmission, it is because we recognise that it participates in many different ways in the generation of new forms of knowledge, new textual forms, new relationships to language." (VENUTI:1992:160).
Foi essa percepção que mudou drasticamente os caminhos trilhados pelos recentes estudos de tradução. Com o surgimento das teorias feministas e do pós-colonialismo nossas intuições sobre conhecimento cultural e diferença cultural foram abaladas; com a crescente ênfase no controle coletivo do conhecimento cultural, o papel desempenhado pela ideologia - o que Antonio Gramsci chama de ‘hegemonia’ - na construção e manutenção desse conhecimento cultural e no controle das transferências através de barreiras culturais, tem assumido importância cada vez maior. Questões são colocadas: qual é o impacto dos sistemas culturais e políticos sobre a tradução? Qual o impacto do sistema cultural-alvo sobre aquilo que é traduzido e por que e como a tradução é usada dentro do sistema?
Ao pesquisador de estudos da tradução e ao comparatista, esses são questionamentos que recebem análise aprofundada, especialmente agora que muitas populações até então marginalizadas e silenciadas começam a contar sua história às culturas hegemônicas que as haviam dominado.
Uma cultura dominada traduzirá muito mais de uma cultura hegemônica do que o reverso. Os autores de uma cultura dominada que sonham ganhar uma ampla audiência tenderão a escrever para tradução em uma língua hegemônica, o que implicará ajustar-se de alguma forma aos estereótipos da cultura hegemônica que, por sua vez, tende a traduzir obras de autores de uma cultura dominada que se ajustem às noções preconcebidas da última, isto é, traduções em uma cultura hegemônica tendem a preservar os estereótipos das culturas dominadas; mais ainda: as traduções de uma cultura dominada incorporadas a uma cultura hegemônica serão vistas como difíceis, misteriosas e mesmo esotéricas, ou seja, de difícil interpretação; ao passo que uma cultura dominada tenderá a traduzir de uma cultura hegemônica de forma a que a obra seja acessível às massas (ROBINSON:1997:235).
A questão da hegemonia é, de fato, um dado relevante quando se examina a produção intelectual do globo: as línguas e culturas hegemônicas do Norte são altamente influentes no desenvolvimento das línguas, culturas e atividades sociais do Sul e as implicações disso nos processos de tradução não podem ser desprezadas, já que a história colonial e, sobretudo pós-colonial mostra que a desigualdade é característica típica entre os países desenvolvidos e em países em desenvolvimento. E o crivo dos comparatistas nessa área deve revelar perspectivas muito ricas e muito material para reflexão.
Tão importantes são os estudos da tradução atualmente que pesquisadores da área têm expandido suas teorias sobre o assunto e têm trilhado novos caminhos, associando o papel da tradução à ‘modelagem’ do sistema literário e à história das idéias, haja vista a profusão de estudos ligando a tradução à linguística, aos estudos literários, à história cultural, à filosofia, à antropologia. Susan Bassnett, pesquisadora de ambas as áreas - tradução e literatura comparada - chega a afirmar que “the current perspective [...] proposes instead that comparative literature be considered a branch of the much wider discipline that is Translation Studies.” (BASSNETT:1988:Preface).
Com tantas teorias novas, outras preocupações passaram a ocupar a mente dos tradutores; entre elas mencionemos certa dose de suspeita que foi gerada com relação à questão da intuição cultural - do ‘politicamente correto’- do que essa ou aquela palavra ou texto significa. Douglas Robinson dá seu conselho ao tradutor: “A first-world translator should never assume his or her intuitions are right about the meaning of a third-world text: a dictum for our times, overheard at a translators’s conference. By the same token, a male translator should never assume his intuitions are right about the meaning of a text written by a woman; a white translator about a text written by a person of color, and so on.” (1997:227)
Seguir os rastros das traduções para detectar essa nova ‘ordem mundial’ é certamente um desafio para aqueles interessados em confrontar literaturas.
Em “Literary History and Translation: an Indian View”, G.N.Deny traz à tona a relação entre literatura comparada e tradução, ao afirmar que “Comparative literature implies that between two related languages there are areas of significance that are shared just as there may be areas of significance that can never be shared. Translation can be seen as an attempt to bring a given language system in its entirety as close as possible to the areas of significance that it shares with another given language or languages. All translations operate within this shared area of significance. Such a notion may help us distinguish synonymy within one language and the shared significance between two related languages." (1997:397-405).
Assim, literatura comparada e tradução caminham lado a lado.
Comparando obras, cotejando textos de diferentes origens e épocas e aprendendo (e apreendendo) cultura, o comparatista está constantemente imergindo em alteridade cultural. E é exatamente de alteridade cultural que nos fala Octavio Paz, quando ele nos traduz o sentido do que é tradução:
“La extrañeza cesa de ser un extravío y se vuelve ejemplar. Suejem plaridad es paradójica y reveladora: el salvaje es la nostalgia del civilizado, su outro yo, su mitad perdida. La traducción refleja estos cambios: ya no es una operación tendiente a mostrar la identidad última de los hombres, sino que es el vehiculo de sus singularidades[...] por una parte la traducción suprime las diferencias entre uma lengua y outra; por outra, las revela más plenamente: gracias a La traducción nos enteramos de que nuestros vecinos hablan y piensan de un modo distinto al nuestro." (s/d: 11-13)
“La extrañeza cesa de ser un extravío y se vuelve ejemplar. Suejem plaridad es paradójica y reveladora: el salvaje es la nostalgia del civilizado, su outro yo, su mitad perdida. La traducción refleja estos cambios: ya no es una operación tendiente a mostrar la identidad última de los hombres, sino que es el vehiculo de sus singularidades[...] por una parte la traducción suprime las diferencias entre uma lengua y outra; por outra, las revela más plenamente: gracias a La traducción nos enteramos de que nuestros vecinos hablan y piensan de un modo distinto al nuestro." (s/d: 11-13)
CONCLUSÃO
Como acreditamos ter sido possível mostrar, a literatura comparada e os estudos de tradução mantêm estreitas relações no sentido de que a primeira tem na segunda constante fonte de inspiração e um riquíssimo campo de trabalho e a segunda pode se valer da primeira para ampliar suas pesquisas. Atrás de ambas está o escriba original, o autor do texto que resultou na tradução, tradução essa que serviu de ferramenta de trabalho para o comparatista. Também como membro da espécie humana, o autor original traduziu para outros homens seus anseios, sonhos e frustrações, que, por sua vez, influenciaram outros homens em seus anseios, sonhos e frustrações, numa cadeia sem fim que, ao final das contas, talvez traia nosso íntimo, inconsciente e ancestral desejo de retornar ao período ‘pré-Babel’. Sendo a língua a ferramenta maior de comunicação entre os homens, a tradução garante progressivamente seu status, sobretudo em tempos de “globalização econômico-financeira e de individualização cultural.” E com ela a literatura comparada alça vôo, vislumbrando não só o resultado do produto final (a tradução) como a fonte que o originou; da fonte para as influências (ou vice-versa); enfim, o que o espírito e a mente humanas criaram como forma de comunicação. Talvez o anseio expresso pelo poeta irlandês Seamus Heaney em seu artigo “The Drag of the Golden Chain”, onde ele discute o trabalho do tradutor, nos remeta àquela época ‘pré-Babel’ e explique de maneira mais poética por que o comparatista e a tradução têm um papel relevante na integração dos povos: “Contact with other tribes, trade with other nations, invasion by bitter empires, conversion to other faiths, education in other cultures – progressively and capably from the cave to the computer age, human beings kep evolving as creatures of language, meeting the new and integrating it, but never without experiencing every time a vestigial tremor, a repetition of that first shock of hearing the other. Hence the writer’s longing can be understood as a nostalgia for the original undifferentiated linguistic home.” (1999:14-16)
REFLEXÕES
B) O termo “comparado” já fora utilizado em 1598 e no século XVII [“discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas greco-latinos” de Frances Meres (1598) e Fulbeck, “Um discurso comparado das leis” (1602) e John Gregory (em Anatomia).
C) Em 1816 surge o Curso de Literatura Comparada. Villemain em 1829 usa o termo, mas Ampère o divulga mais (via Sainte-Beuve).
D) Primeira cátedra em Lyon (1887) e Sorbonne (1910).
E) Na Alemanha (1887 – 1910): Periódico da disciplina comparativista.
F) Nos EUA: 1809 e em Portugal Teófilo Braga foi precursor e na Alemanha Madame de Stäel (1800), “Da literatura considerada em suas relações com as instituições sociais”.
G) “Literatura Comparada” ou “Literatura Geral”? (ou “mundial”, Goethe usou este termo, para diferenciar de literatura nacional. Seria a integração das literaturas entre si), “corrigindo-se” umas às outras.
H) Imitações e Empréstimos? (Por exemplo: influência de Goethe na França, Taine na Inglaterra).
I) Nos EUA aprimoraram-se estudos comparados dentro de uma única literatura, coisa que os franceses rejeitavam.
J) França, 1931 – Paul Van Tieghem: caráter mais analítico. Afirma que os estudos de literatura comparada (binários) seriam como “análise preparatória” aos trabalhos de “literatura geral”, esta mais “sintética” e a primeira mais “analítica”. Ele preparava uma história da Literatura Internacional (literatura comparada como subsídio).
K) Jean-Marie Carré (francês) afirmou: “Literatura Comparada é um ramo da história literária, relações entre nações, entre obras e vidas de escritores. Obras não no seu valor original mas com as transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos”. (Goethe e Carlyle)
L) No Brasil, 1964, o professor Tasso de Oliveira argumentou: “Em Literatura Comparada verifica-se a filiação de uma obra, autor/movimento de um país aos de outros países." Vemos que ele segue orientações francesas, aproximando-se do binarismo e da constituição de “famílias literárias”. O comparativista seria um caçador de indícios. Um objetivo, como percebemos, ainda muito restrito. Já João Ribeiro em 1905 sugeriu comparar a literatura popular com a erudita e Augusto Meyer estudou “temas e fontes”. Sem confundir semelhança com dependência.
M) Machado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no capítulo do “delírio”, sugere um “quimismo” próximo da visão antropofágica de Oswald de Andrade que alargou as fronteiras da imitação, adaptação, assimilação e originalidade. “Todas as sugestões depois de misturadas, preparam-se para nova mastigação, complicado quimismo em que já não é possível distinguir o organismo assimilador das matérias assimiladas.”
N) O francês Marius-François Guynard chega a usar Montaigne como eixo para comparar Racine a Shakespeare, ou ainda estudar a interpretação de um país pela imagem que fazem dele no estrangeiro (“trocas literárias internacionais”), buscava-se mais a semelhança do que eventuais diferenças. Em 1963 e 1974 Etiemble, sucessor de Carré na Sorbonne, renova conceitos ao combater eurocentrismo e defende a “interdependência universal das nações” (Marx).
O) René Wellek em 1958 manifesta-se contra os estéreis paralelismos, resultados de caça às semelhanças. Ele inspira-se no formalismo russo e pede menos dados externos nas análises. Recusa-se a distinguir literatura contemporânea da literatura do passado (postura anti-historicista) e aceita estudos comparados no interior de uma só literatura.
P) O Tcheco Dionys Durisin em 1972, apoiado no estruturalismo de Praga, substituiu o termo “influência” por tipo/estratégia dentro dos sistemas e subsistemas literários proporcionadores de “transformações”, diferente da maneira mecânica e casual dos exames anteriores de exportação e importação literárias. [Durisin deixa de lado a relação entre autores para ocupar-se com aspectos formais (relação entre textos)]. Procurou mais fatos análogos do que diferenças. O texto é o objeto central das preocupações, quando antes imperavam o historicismo e a figura do autor.
Q) As relações que a literatura mantém com outros sistemas semióticos: a inserção de um elemento em um novo sistema altera sua própria natureza e o faz exercer outra função (no novo contexto). A tradição aí, como sugere Tynianov, seria um processo conflituado de idas e voltas. Um texto é absorção e réplica a outro texto, diria Julia Kristeva, deslocando assim “o sentido de dívida antes tão enfatizado, obrigando a um tratamento diferente do problema” (CARVALHAL, 1986: 51), buscar-se-iam os motivos que geraram essas relações, o exame dos procedimentos efetuados e por que houve tal “resgate” em determinado contexto, que novo sentido lhe foi atribuído (Paródia, Paráfrase, etc.). Lembra-nos conceitos como “Pastiche”. Novamente Machado escreve: “idéias nem sempre conservam o nome do pai (...) cada um pega delas, verte-as como pode”, disse o mestre em “Esaú e Jacó”. Ler um texto é ler os textos que ele leu (não só literários).
R) Harold Bloom quis tratar da “angústia da influência” (1973) e desmitificar os procedimentos pelos quais um poeta ajuda a formar outros poetas (história da poesia = influências poéticas). Isso se dá em forma de “desleitura” em processo contínuo de desapropriação/apropriação. Cita a relação Édipo/Laio: correção, complemento, esvaziamento/ruptura, autopurgação, retorno. Não há vitória só a ânsia, cristalização do atrito, “males benéficos” que levam à evolução literária, nesse contexto sem ameaças aos originais. Eliot, em 1907, questiona a originalidade das obras (no ensaio “A tradição e o talento individual”). Não se herda tradição, conquista-se. “Não é possível valorizar [um autor] sozinho, é preciso situá-lo, por contraste ou comparação”, cada obra lê a tradição literária." Já para Borges um texto recente poderia “realçar” um texto anterior, numa quebra de hierarquia “criando” seus “precursores”, modificando a concepção de passado e futuro, obrigando a uma releitura, onde o novo texto é que se converteria em ponto de referência fundamental. Neste sentido Gregório de Matos, Sousândrade e Oswald foram reavaliados nos anos 60. No seu conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, Borges subverte deliberadamente as noções de cronologia e influência, como se o Quixote criado no século vinte fosse anterior ao original, numa livre circulação entre os textos e a leitura como uma reescrita interminável. Conceitos que interessam ao comparativista.Jauss, no final dos anos 60, opinou que a obra não poderia ser mais vista como algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como objeto mutável por efeito das leituras que a transformam, extrapolando o eixo autor-obra.
S) Há, como já vimos, migração de temas, motivos, personagens, como na obra de Lobato (intersemiose até: o gato Félix, Peter Pan e outros vão ao “Sítio do Pica Pau Amarelo”).
T) Será que estabelecida a analogia, instala-se o débito? Há, então, uma dependência/Dominação (Cultural)? O negro que escuta reggae na Nova Zelândia inclui-se nesta ótica? O rap no Manguebeat é estrangeirismo prejudicial (como sugeriu Suassuna)? Há aí uma ideologia colonizadora (abalando os sentimentos nacionais?) Será que não deveríamos valorizar mais a “diferença” do que a “dependência” (será que aquela não é o que nos permite uma inserção na universal)?
U) TRANSCULTURAÇÃO (transformação cultural por influência de outra cultura) como desierarquização, desconstrução. “Todo passado nos é ‘outro’ e deve ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado”, sugeriu Haroldo de Campos (Colóquio das Letras, Lisboa: 1981). Isso acarreta em alteração. Assimilar o que convém, (caráter seletivo). A Europa também reescreve “escrever é remastigar”.
V) Entre o particular e o universal tem que haver dilaceramento (nesta identificação com o universal e a afirmação do particular)?
X) As contradições devem ser expostas (“Tupi tangendo alaúde”, “curupira usando tênis”) (“Nós somos também a civilização européia”, escreveu Mário de Andrade em “O Banquete” – uma crítica). Antropofagia, traição ou corte radical, a dependência é inevitável? Não podemos negá-la, mas podemos expor sua força coerciva e exaltar o que de novo o mais recente texto traz. De “descolonizado” no sentido de resposta, de referencial até para o “colonizador”, entender nossa crítica.
Z) Os estudos literários comparados assim apontam para um terceiro espaço, tão comentado por Paul Gilroy, Édouard Glissant, Stuart Hall, Homi Bhabha, Sandra Nitrini e tantos outros, em reflexões que analisam o local, o nacional e o global e as questões da identidade e da outridade. Sob o ângulo da intertextualidade: singularidades e processos. Hoje o antigo binarismo francês encontra-se diante de várias encruzilhadas sócio-político-culturais, todas exigindo sentidos mais abrangentes. A essência do ser humano hoje e sempre em várias horas e lugares.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo, Ática, 1986.NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo, EDUSP
W) Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador em 1922 e faleceu num trágico acidente automobilístico ocorrido em São Paulo no final dos anos 90. Em 42, estreou como dramaturgo com uma comédia : "Pé de Cabra". Seguiram- se : "Amanhã Será Outro Dia", "Doutor Ninguém" e "Zeca Diabo". Dedicou- se ao rádio e à televisão. Em 1959, escreveu "O Pagador de Promessas" (marco da dramaturgia nacional), peça que se transformou em filme dirigido por Anselmo Duarte e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Dias Gomes ganhou destaque nacional. Escreveu ainda "O Santo Inquérito", "A Revolução dos Beatos", "O Berço do Herói", "A Invasão", "Meu Reino por um Cavalo" e outras peças, sempre com temática em defesa da justiça social e contra a opressão. Para a TV escreveu , dentre outras novelas, "O Bem-Amado" (1973), "Saramandaia" (1975) e a censurada versão original de "Roque Santeiro" (1976) .
Y) Em "O Pagador de Promessas", vemos o personagem central, Zé do Burro, um homem simples do interior, ingênuo e fiel aos valores em que crê (o misticismo é o irmão gêmeo da ignorância e foi gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem pelo homem), é levado ao desespero e à morte, traído pelo governo e pela igreja , embora ajudado pelo povo: "Zé do Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja . Sobe um ou dois degraus de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa- se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê- lo. Zé do Burro desapareceu na onda humana. Ouve- se um tiro . A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica apenas Zé do Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto" (esta é uma das rubricas da cena final da peça) . Tudo porque queria cumprir uma promessa religiosa, carregando uma cruz até dentro da igreja. Ele e sua mulher (Rosa), depararam-se com prostitutas e outros tipos na cidade de Salvador, onde a ambição desmedida, o dinheiro e o jogo político colocam em xeque valores como amizade e dignidade humana . No final, o povo coloca o cadáver de Zé do Burro sobre a cruz e entram todos na igreja.
AA) "O Berço do Herói" : Cabo Jorge é o nome de uma cidade. Este nome foi dado em homenagem ao militar que morreu na Itália lutando contra os nazistas, "pagara com a vida o direito de ser livre. Soldado da democracia, enchera de glória e orgulho o coração da pátria amada". A cidade vivia de sua memória(turismo). As datas do seu nascimento e de sua morte eram pontos altos do calendário cívico de todas as escolas do Brasil até que um dia o cabo reaparece. Na verdade, ele não morrera em combate. Fugira, desertara. Depois do processo de anistia geral ele resolvera voltar à Pátria , à sua cidadezinha. A tradição heróica do exército não podia ser manchada por esta gozação. O comércio e a indústria também sofreriam. Dias Gomes traça uma crítica ao poder militar brasileiro em seus anos de chumbo (ditadura). No meio das prostitutas cabo Jorge conclui: "Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu regimento era eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem para isso. Sempre tive um medo danado de morrer. É tão bom a gente está vivo. E melhor ainda é a gente está vivo e na terra da gente(...) sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Tudo está suspenso por um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o verdadeiro herói. O verdadeiro Deus. O deus- botão(ri) E vocês ficam cultuando a memória de um herói absurdo." Absurdo sim, porque o imaginam com qualidades que não pode ter. Coragem, caráter, dignidade humana... não vêem que tudo isso é absurdo? (O prefeito e o general continuam impassíveis) . "Qual de nós você prefere, Cara de Anjo?" , perguntam as prostitutas ao cabo Jorge. "Todas", ele responde. As prostitutas dão cachaça envenenada dentro de um coco, cabo Jorge, o "Cara de Anjo ", bebe o líquido encomendado pelo Major e morre. As beatas chegam, apedrejam o bordel , as prostitutas gritam: "Chupadoras de hóstias! Beatas de uma figa! Estão é com falta de homem! Vão jogar pedra na mãe!" A prostituta Matilde tem uma idéia: Corta a cabeça do cabo Jorge com o vidro quebrado da janela e diz que foi uma das pedras que a beata jogaram, que o matou. "Não morreu numa guerra de verdade , pra vir morrer numa guerrinha besta de mulheres" , resmunga outra personagem, enquanto o padre e o major decidem que não houve culpados na morte do cabo, a cidade continuaria como era no início, antes do incômodo reaparecimento :"Assim senhoras e senhores,/ foi salva a nossa cidade./ Com pequenos sacrifícios/ de nossa dignidade,/ com ligeiros arranhões/ em nossa castidade,/ e algumas hesitações entre Deus e o Demônio,/ conseguimos preservar/ todo o nosso patrimônio" , sentencia o Major .
BB) Em "A Invasão" Dias Gomes aborda o problema dos sem teto nos centros urbanos. Um drama intenso e amargo. Ele investiga causas e conseqüências dos nossos problemas sociais numa linguagem despojada e contundente . Aponta soluções drásticas num país onde impera a desigualdade social e vive de politicagem . A peça é uma espécie de crônica ao Brasil pós 64. Dias quer alertar o povo da necessidade ser independente. Seu teatro não busca divertir os burgueses. É um teatro de revolta, de amargura. Mesmo suas comédias são atravessadas por um ironia mordaz . Ele despreza os clichês partidários . Nesta peça, os invasores de um prédio, "favela do esqueleto", o povo brasileiro oprimido e explorado por um governo incompetente, dão vazão às suas angústias e anseios. A morte de Mané Gorila, encarregado do despejo tem um toque de vingança da plebe rude. Um juiz autoriza a permanência do grupo no prédio e tudo termina como num delírio.
CC) "A Revolução dos Beatos" também trata do tema dos subdesenvolvidos do Brasil. Um caso de histeria coletiva em Juazeiro do Norte , Ceará, que segue Padre Cícero. A história de um camponês , do misticismo à tomada de consciência social.
DD) " Meu Reino por um Cavalo " é uma comédia caótica sobre um dramaturgo em crise (Otávio Santarrita), questionando os valores sociais tidos como padrão e como absolutos. Caos, pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.
EE) "O Santo Inquérito": História de Branca Dias, torturada e morta pela santa inquisição na Paraíba, por ansiar a liberdade terminou na fogueira : "Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar", diz a mártir.
FF) José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em 1930 em São Luís do Maranhão. Em 49 publicou seu primeiro livro de poemas "Um Pouco Acima do Chão". Em 54 lança "A Luta Corporal", um dos livros mais discutidos de sua geração, rico em pesquisas formais. Gullar foi um dos que falou no poema como "objeto artístico. Em 56, participou da primeira exposição de poesia concreta. Liderou o neoconcretismo (a teoria do não- objeto) . Abandonou o concretismo e voltou a fazer o que se poderia chamar de verso "tradicional". 1958 foi o ano de "Poemas" e daí sua poesia social sobrepõe- se aos seus experimentalismos com a palavra. Seguiram- se : "João Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer" (62, na fase mais politizada), "Dentro da Noite Veloz"(75), "Poema Sujo (76-escrito no exílio da Argentina , retrata os anseios do cidadão brasileiro , suas esperanças, vitórias, derrotas. São versos "sujos", disse o poeta) e "Na Vertigem do Dia" (80) . Escreveu também ensaios ("Cultura Posta em Questão"-63 e "Vanguarda e Subdesenvolvimento"-69) teorizando sobre o engajamento do artista no processo de evolução social, peças teatrais (foi parceiro de Dias Gomes em "Doutor Getúlio, sua Vida e sua Glória"-68, e de Oduvaldo Vianna Filho em "Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come") e assinou roteiros para a televisão, com o "intuito de manter viva" sua poesia. Nesses textos seu lirismo borbulha uma espécie de poesia de resistência, como faria também Chico Buarque.
GG) Os versos de Gullar exibem imagens brutais. É uma obra carregada de tensão psíquica e ideológica - contra a repressão e por justiça. Denuncia os problemas na época da guerra fria (EUA x URSS), o racismo , o drama dos países subdesenvolvidos, o cinismo capitalista, o perigo das armas atômicas. Por outro lado, esse poeta do mundo também faz muitas vezes referência à sua infância, aos seus parentes e conhecidos, ao cotidiano da velha São Luís do Maranhão...
HH) "Sou um homem comum, brasileiro, maior, casado, reservista/ e não vejo na vida, amigo/ nenhum sentido, senão/ lutarmos por um mundo melhor(...) O latifúndio está aí matando(...) o chase bank(...) a nos sugar a vida/ e a bolsa(...) A sombra do latifúndio mancha a paisagem(...)somos milhões e homens/comuns / e podemos formar uma muralha/ com nossos corpos de sonhos e margaridas" (no poema "Homem Comum", do livro "Dentro da Noite Veloz").
II) Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, foi outro escritor que se dedicou ao conflito do homem com a causa social, mostrando que a solidariedade é um dos maiores valores para o ser humano. Seu lirismo ao tratar o cotidiano e os problemas do mundo é marcado por um humor fino , requintado, filosófico, às vezes. Sua obra pode ser dividida em três fases:
JJ) 1ª Fase: GAUCHE, "torto": ("Alguma Poesia" em 1930 e "Brejo das Almas" em 1934)- Ironia , humor, poema- piada, síntese, linguagem coloquial . Faltam saídas, daí só restar ao poeta a poesia, isto é, a esperança. Há nesta fase gauche uma espécie de "inexperiência do sofrimento e deleição ingênua" com o próprio indivíduo, como afirmou o próprio Drummond. Vejamos o poema- pílula "Cota Zero": "Stop/ a vida parou/ ou foi o automóvel?".
KK) 2ª Fase: Individualismo nas contradições entre o eu e o mundo ("Sentimento do Mundo" em 1940, "José" em 1942 e "Rosa do Povo" em 1945) O Eu- lírico interessa- se pelos problemas sociais e exibe sentimento de solidariedade numas poesia social, como já dissemos. "Não, meu corpo não é maior que o mundo./É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores. /Por isso gosto tanto de me contar./Por isso me dispo./Por isso me grito,/por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente em livrarias: Preciso de todos (...) o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias/ entre o amor e o fogo,/ entre a vida e o fogo,/ meu coração cresce, dez metros e explode. / - Ó vida futura! Nós te criaremos." ( trecho de "Mundo grande" , poema do livro "Sentimento do Mundo")
LL) 3ª Fase: A Poesia Filosófica ("Claro Enigma" em 1951, "Fazendeiro do Ar" em 55, "Vida Passada a Limpo" em 59). Pessimismo, preocupação formal na construção dos poemas (verso regular, soneto, seleção vocabular). Quanto ao conteúdo dos versos encontramos ali o existencialismo: Vida/ morte/ velhice/ amor/ família/ infância/ metalinguagem -metapoema, o questionamento da finalidade da própria poesia.
MM) Em "Lição das coisas", 1962 percebemos a liberdade formal, neologismos, aliterações, sugestões visuais e rupturas sintáticas (influências do Concretismo?) .
NN) Nos anos 70 e 80 ("Boitempo" , " As Impurezas do Branco", "A Paixão Medida", "Corpo" e outros), sua poesia é marcada por recordações: A infância em Itabira, a família. O humor cotidiano e a auto-ironia permanecem .
OO) Há também os livros póstumos : "O Amor Natural", publicado em 1992 (poemas eróticos) e "Farewell".
Resenhado por Márcia Regina Terra
O repúdio ao lugar comum e a busca pelo inusitado impingem à obra de Guimarães Rosa o feitio singular de “registrar expressões ainda não usadas no mundo das letras” (p.96). Para Guimarães Rosa, é preciso reinventar o léxico, pois um léxico apenas é insuficiente para descrever situações capazes de atingir o consciente e o inconsciente do leitor, despertando-lhe emoções insuspeitadas. De modo que, na sua tentativa de saciar o seu desejo de produzir significados que fujam ao lugar-comum, torna-se mister para Rosa ‘inventar’ palavras e criar situações que permitam ao leitor “ler outras coisas onde aparentemente há apenas criação de neologismos, inversão sintática ou deslocamento de palavras eruditas para um contexto inesperado” (p.99). Essa necessidade de expandir os limites de sua língua, de subverter as regras, tão latente em Rosa, pode ser percebida em seus dizeres a seguir:
"Escrevo, e creio que é este o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros." (p.99).
Por essas e outras nuances, não seria arriscado afirmar, portanto, que a escritura de Guimarães Rosa é pouco assimilável pelas pessoas habituadas à expressão lingüística mais usual, até porque, para esse autor mineiro, o mote é que as suas palavras produzam efeitos de sentidos desejados que extrapolem o que consegue fazer a escrita ordinária.
Como traduzir para outra língua, uma escritura que “cria sem limites e que ao invés de seguir trilhas amenas faz irromper, de dentro do texto, a lava de seu engendramento”? Como traduzir uma escritura cujos efeitos desejados são coletados por um “caçador de palavras” - autêntico pioneiro a desbravar as veredas de sua língua - vestido em blusão de couro, montado em cavalo manso, “caderneta amarrada com uma corda na sela – para que ela não caísse e para que ele pudesse ir anotando tudo o que lhe despertasse a infinita curiosidade”? Como alcançar efeitos de sentidos desejados por um autor que cria a sua escritura em um “léxico particular”, em um “idioma próprio”, “seu”, já que palavras ‘inventadas’ não constam em dicionário algum?
Uma alternativa possível seria a de beber na própria fonte de criação dessa escritura. E isso foi o que fizeram vários dos tradutores de Rosa, imprimindo a este autor a característica marcante de ele ter se tornado consultor de vários desses tradutores seus. Uma tentativa de garantir que a peculiaridade da sua obra não se perdesse nos meandros dos processos tradutórios a que seus textos foram submetidos? Quem sabe?
Certo é que GR manteve extensa correspondência (cerca de 372 cartas), entre 1958 a 1967, com tradutores diversos (Curt Meyer-Clason, Harriet de Onís, J. Jacques Villard, Angel Crespo e Pilar G. Bedate, Edoardo Bizarri, entre outros), em várias línguas, que ele dominava em diferentes graus (alemão, inglês, francês, espanhol, italiano, etc.). O mais importante é que o resultado desse insólito interlóquio pertence, hoje, ao arquivo do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo.
É com base nesse precioso arquivo que Nícia Bonatti, pesquisadora no campo de estudos da tradução, cria a sua não menos preciosa escritura, a sua tese de doutorado, cujos Capítulos III e IV são o foco desta resenha. Trata-se de uma obra que prima pela inteligência e aprofundamento envolvente com que é tecida pela autora, que consegue juntar, com habilidade surpreendente, todos os emaranhados fios que perfazem o complexo processo tradutório da peculiar escritura de Rosa, estando imbricados nesse processo, conflitos, angústias e tropeços, vivenciados tanto pelo autor quanto pelos tradutores seus, frente à dificuldade de alcançarem, em suas respectivas línguas, os efeitos de sentidos desejados por Guimarães Rosa, não apenas na língua dele, como na língua do outro.
Os modos de Rosa se relacionar com os diversos tradutores seus, eram diferenciados. Via de regra, ele tratava a todos com cortesia e atenção notáveis. Todavia, havia, dentre todos eles, um especialmente marcante, Edoardo Bizarri, um tradutor italiano, com quem Rosa trocou 72 das 372 cartas. Com este Rosa mantinha um relacionamento de igual para igual, id est, Rosa colocava o trabalho de ambos no mesmo patamar de escritura e criação. Tamanha identificação entre autor/tradutor é justificada, por Bonatti, de forma tão convincente, que, a nosso ver, merece ser, aqui, evidenciada:
Guimarães Rosa não é um escritor qualquer, dadas as características de sua escritura. Bizarri também não é um tradutor qualquer, dadas suas características pessoais e sua imensa capacidade de acompanhar a escritura de Rosa. O leitor a que ambos se dirigem, cada um em uma língua, também não é um qualquer, pois os textos não se destinam a facilitar nada para esse leitor final. A relação de identificação que se dá entre autor e tradutor é de tal forma determinante que os papéis que ambos desempenham perdem seus contornos próprios e superpõem-se, impedindo a clara determinação de quem é quem” (p.92).
Não é pouco intrigante perceber, no relacionamento Bizarri-Rosa, o fato de que os questionamentos do primeiro mobilizam no segundo a necessidade de explicitações sobre o seu próprio processo de criação. Refletir sobre a sua própria escritura, abre para Rosa infinitas possibilidades de interpretação e reinterpretação, um mecanismo que se revela enriquecedor ao mesmo tempo que inquietante, como confessa o autor: “Rever qualquer texto meu, já, de si, é qualquer coisa de tremendo; porque o meu incontentamento é crescente, a ânsia de perfectibilidade, fico querendo reformar e reconstruir tudo, é uma verdadeira tortura” (carta a Harriet de Onís, de 23 de abril de 1959), (p.93).
No capítulo IV intitulado “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”, dedicando-se, com mais profundidade, ao exame do processo de identificação entre autor-tradutor, Bonatti consegue mostrar que a identificação inquestionável entre ambos não é condição suficientemente forte para impedir que aconteçam, vez ou outra, certos tropeços, entre Rosa e seu dileto tradutor, em função das dificuldades causadas pelo que poderíamos chamar, cremos, de embates travados entre “efeitos de desejo do tradutor Vs efeitos de desejo do autor”. Isso porque, embora conseguisse causar no público italiano o mesmo sentimento desejado por Rosa em seu leitor, aliás um fato reconhecido por Rosa (que costumava dizer: “quem quiser realmente entender G. Rosa, terá de ir às edições italianas”), Bizarri, via-se, em muitas situações, em ‘papos-de-aranha’ para construir um sentido plausível em sua língua italiana, para os inusitados termos de Rosa.
Na carta 62, enviada a G. Rosa, como exemplo, é transparente o sentimento de desorientação que acomete Bizarri quando este confessa:
(...) de repente, esbarrei, empaquei, foi na página 694. Passei um dia de profundo descordo, inerte. Voltei à carga no dia seguinte, esperando restabelecer a sintonia. Nada feito. Para não parar definitivamente, o único jeito foi deixar de lado a diaba da página; o que fiz, retomando meu caminho na 695; e pedir socorro, para pegar a morma (...).
Quer dizer, a escritura de Rosa, recheada de genialidade criativa, consegue embotar a capacidade tradutória, também genial, de Bizarri e extrair deste uma lamentação angustiada quando, ao fim e ao cabo, Bizarri decide-se por “transcrever o trecho que derrotou todos os meus brios de tradutor” (idem). Enfim, o que pode o tradutor em tais situações?
Bizarri, no caso, parece optar por não ferir de morte o respeito devido ao autor e tenta se ajeitar, da melhor forma possível, em sua língua, perscrutando formas de alcançar o que seriam os efeitos desejados por Rosa, na dele. No caso das diabólicas onomatopéias, por exemplo, Bizarri “guarda os sons, tão caros a Rosa, e dá-lhes uma grafia em italiano que reproduza a sonoridade brasileira”; no que diz respeito às intraduzíveis palavras que são criação de Rosa, Bizarri “traduz a explicação que o mineiro lhe dá, e não aquilo que está no texto de partida”, os textos que Rosa classifica como ‘literais’ “são traduzidos como tais”.
O que se depreende disso tudo, portanto, é que Bizarri vê Rosa como aquele que detém as respostas para as suas inquietações e, nessa constatação, como ressalta Bonatti, configura-se um sentimento de desespero no tradutor que também se vê obrigado a refletir sobre os seus próprios mecanismos de escrita e, não raro, prefere deixar-se ocultar para garantir a primazia dos efeitos de sentido desejados pelo autor.
Para finalizar, caberia comentar que Bonatti consegue evidenciar, em sua brilhante tese, o quão difícil era seguir Rosa em suas aventuras lingüísticas, além de possibilitar vislumbrar a empreitada colossal a que cada tradutor se expunha ao se defrontar com a difícil arte de interpretar as idéias sui generis desse fantástico escritor. Aliás, como ressalta a citada autora, embora os aspectos abordados tenham a ver com um relacionamento ímpar entre um autor e um tradutor específicos, ocorrido em um cenário de identificação e transferência, o fato não deixa de apontar para situações similares, em maior ou menor grau, que podem ocorrer em qualquer momento de qualquer tradução.
(Resenha de: BONATTI, Nícia Adan. Entre o amor da língua e o desejo: a tarefa sem fim do tradutor. Tese de doutorado, IEL/Unicamp, 1998.
Capítulos resenhados: Cap.III - “Uma escrita singular, ou de & sobre Rosa”; Cap.IV “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”.)
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Sugestões para
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Lineu Roberto de Moura
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A) Onde começa a expressão Literatura Comparada (entre países, estilos e épocas): Séc. XIX – Compara estruturas com finalidade de extrair leis gerais. Em filosofia e fisiologia. [História Comparada dos Sistemas de Filosofia, de Degérand (1804) e Fisiologia Comparada (1833), de Blainville].
B) O termo “comparado” já fora utilizado em 1598 e no século XVII [“discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas greco-latinos” de Frances Meres (1598) e Fulbeck, “Um discurso comparado das leis” (1602) e John Gregory (em Anatomia).
C) Em 1816 surge o Curso de Literatura Comparada. Villemain em 1829 usa o termo, mas Ampère o divulga mais (via Sainte-Beuve).
D) Primeira cátedra em Lyon (1887) e Sorbonne (1910).
E) Na Alemanha (1887 – 1910): Periódico da disciplina comparativista.
F) Nos EUA: 1809 e em Portugal Teófilo Braga foi precursor e na Alemanha Madame de Stäel (1800), “Da literatura considerada em suas relações com as instituições sociais”.
G) “Literatura Comparada” ou “Literatura Geral”? (ou “mundial”, Goethe usou este termo, para diferenciar de literatura nacional. Seria a integração das literaturas entre si), “corrigindo-se” umas às outras.
H) Imitações e Empréstimos? (Por exemplo: influência de Goethe na França, Taine na Inglaterra).
I) Nos EUA aprimoraram-se estudos comparados dentro de uma única literatura, coisa que os franceses rejeitavam.
J) França, 1931 – Paul Van Tieghem: caráter mais analítico. Afirma que os estudos de literatura comparada (binários) seriam como “análise preparatória” aos trabalhos de “literatura geral”, esta mais “sintética” e a primeira mais “analítica”. Ele preparava uma história da Literatura Internacional (literatura comparada como subsídio).
K) Jean-Marie Carré (francês) afirmou: “Literatura Comparada é um ramo da história literária, relações entre nações, entre obras e vidas de escritores. Obras não no seu valor original mas com as transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos”. (Goethe e Carlyle)
L) No Brasil, 1964, o professor Tasso de Oliveira argumentou: “Em Literatura Comparada verifica-se a filiação de uma obra, autor/movimento de um país aos de outros países." Vemos que ele segue orientações francesas, aproximando-se do binarismo e da constituição de “famílias literárias”. O comparativista seria um caçador de indícios. Um objetivo, como percebemos, ainda muito restrito. Já João Ribeiro em 1905 sugeriu comparar a literatura popular com a erudita e Augusto Meyer estudou “temas e fontes”. Sem confundir semelhança com dependência.
M) Machado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no capítulo do “delírio”, sugere um “quimismo” próximo da visão antropofágica de Oswald de Andrade que alargou as fronteiras da imitação, adaptação, assimilação e originalidade. “Todas as sugestões depois de misturadas, preparam-se para nova mastigação, complicado quimismo em que já não é possível distinguir o organismo assimilador das matérias assimiladas.”
N) O francês Marius-François Guynard chega a usar Montaigne como eixo para comparar Racine a Shakespeare, ou ainda estudar a interpretação de um país pela imagem que fazem dele no estrangeiro (“trocas literárias internacionais”), buscava-se mais a semelhança do que eventuais diferenças. Em 1963 e 1974 Etiemble, sucessor de Carré na Sorbonne, renova conceitos ao combater eurocentrismo e defende a “interdependência universal das nações” (Marx).
O) René Wellek em 1958 manifesta-se contra os estéreis paralelismos, resultados de caça às semelhanças. Ele inspira-se no formalismo russo e pede menos dados externos nas análises. Recusa-se a distinguir literatura contemporânea da literatura do passado (postura anti-historicista) e aceita estudos comparados no interior de uma só literatura.
P) O Tcheco Dionys Durisin em 1972, apoiado no estruturalismo de Praga, substituiu o termo “influência” por tipo/estratégia dentro dos sistemas e subsistemas literários proporcionadores de “transformações”, diferente da maneira mecânica e casual dos exames anteriores de exportação e importação literárias. [Durisin deixa de lado a relação entre autores para ocupar-se com aspectos formais (relação entre textos)]. Procurou mais fatos análogos do que diferenças. O texto é o objeto central das preocupações, quando antes imperavam o historicismo e a figura do autor.
Q) As relações que a literatura mantém com outros sistemas semióticos: a inserção de um elemento em um novo sistema altera sua própria natureza e o faz exercer outra função (no novo contexto). A tradição aí, como sugere Tynianov, seria um processo conflituado de idas e voltas. Um texto é absorção e réplica a outro texto, diria Julia Kristeva, deslocando assim “o sentido de dívida antes tão enfatizado, obrigando a um tratamento diferente do problema” (CARVALHAL, 1986: 51), buscar-se-iam os motivos que geraram essas relações, o exame dos procedimentos efetuados e por que houve tal “resgate” em determinado contexto, que novo sentido lhe foi atribuído (Paródia, Paráfrase, etc.). Lembra-nos conceitos como “Pastiche”. Novamente Machado escreve: “idéias nem sempre conservam o nome do pai (...) cada um pega delas, verte-as como pode”, disse o mestre em “Esaú e Jacó”. Ler um texto é ler os textos que ele leu (não só literários).
R) Harold Bloom quis tratar da “angústia da influência” (1973) e desmitificar os procedimentos pelos quais um poeta ajuda a formar outros poetas (história da poesia = influências poéticas). Isso se dá em forma de “desleitura” em processo contínuo de desapropriação/apropriação. Cita a relação Édipo/Laio: correção, complemento, esvaziamento/ruptura, autopurgação, retorno. Não há vitória só a ânsia, cristalização do atrito, “males benéficos” que levam à evolução literária, nesse contexto sem ameaças aos originais. Eliot, em 1907, questiona a originalidade das obras (no ensaio “A tradição e o talento individual”). Não se herda tradição, conquista-se. “Não é possível valorizar [um autor] sozinho, é preciso situá-lo, por contraste ou comparação”, cada obra lê a tradição literária." Já para Borges um texto recente poderia “realçar” um texto anterior, numa quebra de hierarquia “criando” seus “precursores”, modificando a concepção de passado e futuro, obrigando a uma releitura, onde o novo texto é que se converteria em ponto de referência fundamental. Neste sentido Gregório de Matos, Sousândrade e Oswald foram reavaliados nos anos 60. No seu conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, Borges subverte deliberadamente as noções de cronologia e influência, como se o Quixote criado no século vinte fosse anterior ao original, numa livre circulação entre os textos e a leitura como uma reescrita interminável. Conceitos que interessam ao comparativista.Jauss, no final dos anos 60, opinou que a obra não poderia ser mais vista como algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como objeto mutável por efeito das leituras que a transformam, extrapolando o eixo autor-obra.
S) Há, como já vimos, migração de temas, motivos, personagens, como na obra de Lobato (intersemiose até: o gato Félix, Peter Pan e outros vão ao “Sítio do Pica Pau Amarelo”).
T) Será que estabelecida a analogia, instala-se o débito? Há, então, uma dependência/Dominação (Cultural)? O negro que escuta reggae na Nova Zelândia inclui-se nesta ótica? O rap no Manguebeat é estrangeirismo prejudicial (como sugeriu Suassuna)? Há aí uma ideologia colonizadora (abalando os sentimentos nacionais?) Será que não deveríamos valorizar mais a “diferença” do que a “dependência” (será que aquela não é o que nos permite uma inserção na universal)?
U) TRANSCULTURAÇÃO (transformação cultural por influência de outra cultura) como desierarquização, desconstrução. “Todo passado nos é ‘outro’ e deve ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado”, sugeriu Haroldo de Campos (Colóquio das Letras, Lisboa: 1981). Isso acarreta em alteração. Assimilar o que convém, (caráter seletivo). A Europa também reescreve “escrever é remastigar”.
V) Entre o particular e o universal tem que haver dilaceramento (nesta identificação com o universal e a afirmação do particular)?
X) As contradições devem ser expostas (“Tupi tangendo alaúde”, “curupira usando tênis”) (“Nós somos também a civilização européia”, escreveu Mário de Andrade em “O Banquete” – uma crítica). Antropofagia, traição ou corte radical, a dependência é inevitável? Não podemos negá-la, mas podemos expor sua força coerciva e exaltar o que de novo o mais recente texto traz. De “descolonizado” no sentido de resposta, de referencial até para o “colonizador”, entender nossa crítica.
Z) Os estudos literários comparados assim apontam para um terceiro espaço, tão comentado por Paul Gilroy, Édouard Glissant, Stuart Hall, Homi Bhabha, Sandra Nitrini e tantos outros, em reflexões que analisam o local, o nacional e o global e as questões da identidade e da outridade. Sob o ângulo da intertextualidade: singularidades e processos. Hoje o antigo binarismo francês encontra-se diante de várias encruzilhadas sócio-político-culturais, todas exigindo sentidos mais abrangentes. A essência do ser humano hoje e sempre em várias horas e lugares.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo, Ática, 1986.NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo, EDUSP
W) Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador em 1922 e faleceu num trágico acidente automobilístico ocorrido em São Paulo no final dos anos 90. Em 42, estreou como dramaturgo com uma comédia : "Pé de Cabra". Seguiram- se : "Amanhã Será Outro Dia", "Doutor Ninguém" e "Zeca Diabo". Dedicou- se ao rádio e à televisão. Em 1959, escreveu "O Pagador de Promessas" (marco da dramaturgia nacional), peça que se transformou em filme dirigido por Anselmo Duarte e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Dias Gomes ganhou destaque nacional. Escreveu ainda "O Santo Inquérito", "A Revolução dos Beatos", "O Berço do Herói", "A Invasão", "Meu Reino por um Cavalo" e outras peças, sempre com temática em defesa da justiça social e contra a opressão. Para a TV escreveu , dentre outras novelas, "O Bem-Amado" (1973), "Saramandaia" (1975) e a censurada versão original de "Roque Santeiro" (1976) .
Y) Em "O Pagador de Promessas", vemos o personagem central, Zé do Burro, um homem simples do interior, ingênuo e fiel aos valores em que crê (o misticismo é o irmão gêmeo da ignorância e foi gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem pelo homem), é levado ao desespero e à morte, traído pelo governo e pela igreja , embora ajudado pelo povo: "Zé do Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja . Sobe um ou dois degraus de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa- se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê- lo. Zé do Burro desapareceu na onda humana. Ouve- se um tiro . A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica apenas Zé do Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto" (esta é uma das rubricas da cena final da peça) . Tudo porque queria cumprir uma promessa religiosa, carregando uma cruz até dentro da igreja. Ele e sua mulher (Rosa), depararam-se com prostitutas e outros tipos na cidade de Salvador, onde a ambição desmedida, o dinheiro e o jogo político colocam em xeque valores como amizade e dignidade humana . No final, o povo coloca o cadáver de Zé do Burro sobre a cruz e entram todos na igreja.
AA) "O Berço do Herói" : Cabo Jorge é o nome de uma cidade. Este nome foi dado em homenagem ao militar que morreu na Itália lutando contra os nazistas, "pagara com a vida o direito de ser livre. Soldado da democracia, enchera de glória e orgulho o coração da pátria amada". A cidade vivia de sua memória(turismo). As datas do seu nascimento e de sua morte eram pontos altos do calendário cívico de todas as escolas do Brasil até que um dia o cabo reaparece. Na verdade, ele não morrera em combate. Fugira, desertara. Depois do processo de anistia geral ele resolvera voltar à Pátria , à sua cidadezinha. A tradição heróica do exército não podia ser manchada por esta gozação. O comércio e a indústria também sofreriam. Dias Gomes traça uma crítica ao poder militar brasileiro em seus anos de chumbo (ditadura). No meio das prostitutas cabo Jorge conclui: "Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu regimento era eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem para isso. Sempre tive um medo danado de morrer. É tão bom a gente está vivo. E melhor ainda é a gente está vivo e na terra da gente(...) sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Tudo está suspenso por um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o verdadeiro herói. O verdadeiro Deus. O deus- botão(ri) E vocês ficam cultuando a memória de um herói absurdo." Absurdo sim, porque o imaginam com qualidades que não pode ter. Coragem, caráter, dignidade humana... não vêem que tudo isso é absurdo? (O prefeito e o general continuam impassíveis) . "Qual de nós você prefere, Cara de Anjo?" , perguntam as prostitutas ao cabo Jorge. "Todas", ele responde. As prostitutas dão cachaça envenenada dentro de um coco, cabo Jorge, o "Cara de Anjo ", bebe o líquido encomendado pelo Major e morre. As beatas chegam, apedrejam o bordel , as prostitutas gritam: "Chupadoras de hóstias! Beatas de uma figa! Estão é com falta de homem! Vão jogar pedra na mãe!" A prostituta Matilde tem uma idéia: Corta a cabeça do cabo Jorge com o vidro quebrado da janela e diz que foi uma das pedras que a beata jogaram, que o matou. "Não morreu numa guerra de verdade , pra vir morrer numa guerrinha besta de mulheres" , resmunga outra personagem, enquanto o padre e o major decidem que não houve culpados na morte do cabo, a cidade continuaria como era no início, antes do incômodo reaparecimento :"Assim senhoras e senhores,/ foi salva a nossa cidade./ Com pequenos sacrifícios/ de nossa dignidade,/ com ligeiros arranhões/ em nossa castidade,/ e algumas hesitações entre Deus e o Demônio,/ conseguimos preservar/ todo o nosso patrimônio" , sentencia o Major .
BB) Em "A Invasão" Dias Gomes aborda o problema dos sem teto nos centros urbanos. Um drama intenso e amargo. Ele investiga causas e conseqüências dos nossos problemas sociais numa linguagem despojada e contundente . Aponta soluções drásticas num país onde impera a desigualdade social e vive de politicagem . A peça é uma espécie de crônica ao Brasil pós 64. Dias quer alertar o povo da necessidade ser independente. Seu teatro não busca divertir os burgueses. É um teatro de revolta, de amargura. Mesmo suas comédias são atravessadas por um ironia mordaz . Ele despreza os clichês partidários . Nesta peça, os invasores de um prédio, "favela do esqueleto", o povo brasileiro oprimido e explorado por um governo incompetente, dão vazão às suas angústias e anseios. A morte de Mané Gorila, encarregado do despejo tem um toque de vingança da plebe rude. Um juiz autoriza a permanência do grupo no prédio e tudo termina como num delírio.
CC) "A Revolução dos Beatos" também trata do tema dos subdesenvolvidos do Brasil. Um caso de histeria coletiva em Juazeiro do Norte , Ceará, que segue Padre Cícero. A história de um camponês , do misticismo à tomada de consciência social.
DD) " Meu Reino por um Cavalo " é uma comédia caótica sobre um dramaturgo em crise (Otávio Santarrita), questionando os valores sociais tidos como padrão e como absolutos. Caos, pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.
EE) "O Santo Inquérito": História de Branca Dias, torturada e morta pela santa inquisição na Paraíba, por ansiar a liberdade terminou na fogueira : "Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar", diz a mártir.
FF) José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em 1930 em São Luís do Maranhão. Em 49 publicou seu primeiro livro de poemas "Um Pouco Acima do Chão". Em 54 lança "A Luta Corporal", um dos livros mais discutidos de sua geração, rico em pesquisas formais. Gullar foi um dos que falou no poema como "objeto artístico. Em 56, participou da primeira exposição de poesia concreta. Liderou o neoconcretismo (a teoria do não- objeto) . Abandonou o concretismo e voltou a fazer o que se poderia chamar de verso "tradicional". 1958 foi o ano de "Poemas" e daí sua poesia social sobrepõe- se aos seus experimentalismos com a palavra. Seguiram- se : "João Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer" (62, na fase mais politizada), "Dentro da Noite Veloz"(75), "Poema Sujo (76-escrito no exílio da Argentina , retrata os anseios do cidadão brasileiro , suas esperanças, vitórias, derrotas. São versos "sujos", disse o poeta) e "Na Vertigem do Dia" (80) . Escreveu também ensaios ("Cultura Posta em Questão"-63 e "Vanguarda e Subdesenvolvimento"-69) teorizando sobre o engajamento do artista no processo de evolução social, peças teatrais (foi parceiro de Dias Gomes em "Doutor Getúlio, sua Vida e sua Glória"-68, e de Oduvaldo Vianna Filho em "Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come") e assinou roteiros para a televisão, com o "intuito de manter viva" sua poesia. Nesses textos seu lirismo borbulha uma espécie de poesia de resistência, como faria também Chico Buarque.
GG) Os versos de Gullar exibem imagens brutais. É uma obra carregada de tensão psíquica e ideológica - contra a repressão e por justiça. Denuncia os problemas na época da guerra fria (EUA x URSS), o racismo , o drama dos países subdesenvolvidos, o cinismo capitalista, o perigo das armas atômicas. Por outro lado, esse poeta do mundo também faz muitas vezes referência à sua infância, aos seus parentes e conhecidos, ao cotidiano da velha São Luís do Maranhão...
HH) "Sou um homem comum, brasileiro, maior, casado, reservista/ e não vejo na vida, amigo/ nenhum sentido, senão/ lutarmos por um mundo melhor(...) O latifúndio está aí matando(...) o chase bank(...) a nos sugar a vida/ e a bolsa(...) A sombra do latifúndio mancha a paisagem(...)somos milhões e homens/comuns / e podemos formar uma muralha/ com nossos corpos de sonhos e margaridas" (no poema "Homem Comum", do livro "Dentro da Noite Veloz").
II) Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, foi outro escritor que se dedicou ao conflito do homem com a causa social, mostrando que a solidariedade é um dos maiores valores para o ser humano. Seu lirismo ao tratar o cotidiano e os problemas do mundo é marcado por um humor fino , requintado, filosófico, às vezes. Sua obra pode ser dividida em três fases:
JJ) 1ª Fase: GAUCHE, "torto": ("Alguma Poesia" em 1930 e "Brejo das Almas" em 1934)- Ironia , humor, poema- piada, síntese, linguagem coloquial . Faltam saídas, daí só restar ao poeta a poesia, isto é, a esperança. Há nesta fase gauche uma espécie de "inexperiência do sofrimento e deleição ingênua" com o próprio indivíduo, como afirmou o próprio Drummond. Vejamos o poema- pílula "Cota Zero": "Stop/ a vida parou/ ou foi o automóvel?".
KK) 2ª Fase: Individualismo nas contradições entre o eu e o mundo ("Sentimento do Mundo" em 1940, "José" em 1942 e "Rosa do Povo" em 1945) O Eu- lírico interessa- se pelos problemas sociais e exibe sentimento de solidariedade numas poesia social, como já dissemos. "Não, meu corpo não é maior que o mundo./É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores. /Por isso gosto tanto de me contar./Por isso me dispo./Por isso me grito,/por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente em livrarias: Preciso de todos (...) o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias/ entre o amor e o fogo,/ entre a vida e o fogo,/ meu coração cresce, dez metros e explode. / - Ó vida futura! Nós te criaremos." ( trecho de "Mundo grande" , poema do livro "Sentimento do Mundo")
LL) 3ª Fase: A Poesia Filosófica ("Claro Enigma" em 1951, "Fazendeiro do Ar" em 55, "Vida Passada a Limpo" em 59). Pessimismo, preocupação formal na construção dos poemas (verso regular, soneto, seleção vocabular). Quanto ao conteúdo dos versos encontramos ali o existencialismo: Vida/ morte/ velhice/ amor/ família/ infância/ metalinguagem -metapoema, o questionamento da finalidade da própria poesia.
MM) Em "Lição das coisas", 1962 percebemos a liberdade formal, neologismos, aliterações, sugestões visuais e rupturas sintáticas (influências do Concretismo?) .
NN) Nos anos 70 e 80 ("Boitempo" , " As Impurezas do Branco", "A Paixão Medida", "Corpo" e outros), sua poesia é marcada por recordações: A infância em Itabira, a família. O humor cotidiano e a auto-ironia permanecem .
OO) Há também os livros póstumos : "O Amor Natural", publicado em 1992 (poemas eróticos) e "Farewell".
GUIMARÃES ROSA E TRADUTORES SEUS: QUEM É QUEM?
Resenhado por Márcia Regina Terra
O repúdio ao lugar comum e a busca pelo inusitado impingem à obra de Guimarães Rosa o feitio singular de “registrar expressões ainda não usadas no mundo das letras” (p.96). Para Guimarães Rosa, é preciso reinventar o léxico, pois um léxico apenas é insuficiente para descrever situações capazes de atingir o consciente e o inconsciente do leitor, despertando-lhe emoções insuspeitadas. De modo que, na sua tentativa de saciar o seu desejo de produzir significados que fujam ao lugar-comum, torna-se mister para Rosa ‘inventar’ palavras e criar situações que permitam ao leitor “ler outras coisas onde aparentemente há apenas criação de neologismos, inversão sintática ou deslocamento de palavras eruditas para um contexto inesperado” (p.99). Essa necessidade de expandir os limites de sua língua, de subverter as regras, tão latente em Rosa, pode ser percebida em seus dizeres a seguir:
"Escrevo, e creio que é este o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros." (p.99).
Por essas e outras nuances, não seria arriscado afirmar, portanto, que a escritura de Guimarães Rosa é pouco assimilável pelas pessoas habituadas à expressão lingüística mais usual, até porque, para esse autor mineiro, o mote é que as suas palavras produzam efeitos de sentidos desejados que extrapolem o que consegue fazer a escrita ordinária.
Como traduzir para outra língua, uma escritura que “cria sem limites e que ao invés de seguir trilhas amenas faz irromper, de dentro do texto, a lava de seu engendramento”? Como traduzir uma escritura cujos efeitos desejados são coletados por um “caçador de palavras” - autêntico pioneiro a desbravar as veredas de sua língua - vestido em blusão de couro, montado em cavalo manso, “caderneta amarrada com uma corda na sela – para que ela não caísse e para que ele pudesse ir anotando tudo o que lhe despertasse a infinita curiosidade”? Como alcançar efeitos de sentidos desejados por um autor que cria a sua escritura em um “léxico particular”, em um “idioma próprio”, “seu”, já que palavras ‘inventadas’ não constam em dicionário algum?
Como conseguir efeitos desejados para textos que exigem “certo encadeamento rítmico que cria um certo cenário” que não pode ser “minimizado, filtrado ou ignorado numa tradução”?
Uma alternativa possível seria a de beber na própria fonte de criação dessa escritura. E isso foi o que fizeram vários dos tradutores de Rosa, imprimindo a este autor a característica marcante de ele ter se tornado consultor de vários desses tradutores seus. Uma tentativa de garantir que a peculiaridade da sua obra não se perdesse nos meandros dos processos tradutórios a que seus textos foram submetidos? Quem sabe?
Certo é que GR manteve extensa correspondência (cerca de 372 cartas), entre 1958 a 1967, com tradutores diversos (Curt Meyer-Clason, Harriet de Onís, J. Jacques Villard, Angel Crespo e Pilar G. Bedate, Edoardo Bizarri, entre outros), em várias línguas, que ele dominava em diferentes graus (alemão, inglês, francês, espanhol, italiano, etc.). O mais importante é que o resultado desse insólito interlóquio pertence, hoje, ao arquivo do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo.
É com base nesse precioso arquivo que Nícia Bonatti, pesquisadora no campo de estudos da tradução, cria a sua não menos preciosa escritura, a sua tese de doutorado, cujos Capítulos III e IV são o foco desta resenha. Trata-se de uma obra que prima pela inteligência e aprofundamento envolvente com que é tecida pela autora, que consegue juntar, com habilidade surpreendente, todos os emaranhados fios que perfazem o complexo processo tradutório da peculiar escritura de Rosa, estando imbricados nesse processo, conflitos, angústias e tropeços, vivenciados tanto pelo autor quanto pelos tradutores seus, frente à dificuldade de alcançarem, em suas respectivas línguas, os efeitos de sentidos desejados por Guimarães Rosa, não apenas na língua dele, como na língua do outro.
Os modos de Rosa se relacionar com os diversos tradutores seus, eram diferenciados. Via de regra, ele tratava a todos com cortesia e atenção notáveis. Todavia, havia, dentre todos eles, um especialmente marcante, Edoardo Bizarri, um tradutor italiano, com quem Rosa trocou 72 das 372 cartas. Com este Rosa mantinha um relacionamento de igual para igual, id est, Rosa colocava o trabalho de ambos no mesmo patamar de escritura e criação. Tamanha identificação entre autor/tradutor é justificada, por Bonatti, de forma tão convincente, que, a nosso ver, merece ser, aqui, evidenciada:
Guimarães Rosa não é um escritor qualquer, dadas as características de sua escritura. Bizarri também não é um tradutor qualquer, dadas suas características pessoais e sua imensa capacidade de acompanhar a escritura de Rosa. O leitor a que ambos se dirigem, cada um em uma língua, também não é um qualquer, pois os textos não se destinam a facilitar nada para esse leitor final. A relação de identificação que se dá entre autor e tradutor é de tal forma determinante que os papéis que ambos desempenham perdem seus contornos próprios e superpõem-se, impedindo a clara determinação de quem é quem” (p.92).
Não é pouco intrigante perceber, no relacionamento Bizarri-Rosa, o fato de que os questionamentos do primeiro mobilizam no segundo a necessidade de explicitações sobre o seu próprio processo de criação. Refletir sobre a sua própria escritura, abre para Rosa infinitas possibilidades de interpretação e reinterpretação, um mecanismo que se revela enriquecedor ao mesmo tempo que inquietante, como confessa o autor: “Rever qualquer texto meu, já, de si, é qualquer coisa de tremendo; porque o meu incontentamento é crescente, a ânsia de perfectibilidade, fico querendo reformar e reconstruir tudo, é uma verdadeira tortura” (carta a Harriet de Onís, de 23 de abril de 1959), (p.93).
No capítulo IV intitulado “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”, dedicando-se, com mais profundidade, ao exame do processo de identificação entre autor-tradutor, Bonatti consegue mostrar que a identificação inquestionável entre ambos não é condição suficientemente forte para impedir que aconteçam, vez ou outra, certos tropeços, entre Rosa e seu dileto tradutor, em função das dificuldades causadas pelo que poderíamos chamar, cremos, de embates travados entre “efeitos de desejo do tradutor Vs efeitos de desejo do autor”. Isso porque, embora conseguisse causar no público italiano o mesmo sentimento desejado por Rosa em seu leitor, aliás um fato reconhecido por Rosa (que costumava dizer: “quem quiser realmente entender G. Rosa, terá de ir às edições italianas”), Bizarri, via-se, em muitas situações, em ‘papos-de-aranha’ para construir um sentido plausível em sua língua italiana, para os inusitados termos de Rosa.
Na carta 62, enviada a G. Rosa, como exemplo, é transparente o sentimento de desorientação que acomete Bizarri quando este confessa:
(...) de repente, esbarrei, empaquei, foi na página 694. Passei um dia de profundo descordo, inerte. Voltei à carga no dia seguinte, esperando restabelecer a sintonia. Nada feito. Para não parar definitivamente, o único jeito foi deixar de lado a diaba da página; o que fiz, retomando meu caminho na 695; e pedir socorro, para pegar a morma (...).
Quer dizer, a escritura de Rosa, recheada de genialidade criativa, consegue embotar a capacidade tradutória, também genial, de Bizarri e extrair deste uma lamentação angustiada quando, ao fim e ao cabo, Bizarri decide-se por “transcrever o trecho que derrotou todos os meus brios de tradutor” (idem). Enfim, o que pode o tradutor em tais situações?
Bizarri, no caso, parece optar por não ferir de morte o respeito devido ao autor e tenta se ajeitar, da melhor forma possível, em sua língua, perscrutando formas de alcançar o que seriam os efeitos desejados por Rosa, na dele. No caso das diabólicas onomatopéias, por exemplo, Bizarri “guarda os sons, tão caros a Rosa, e dá-lhes uma grafia em italiano que reproduza a sonoridade brasileira”; no que diz respeito às intraduzíveis palavras que são criação de Rosa, Bizarri “traduz a explicação que o mineiro lhe dá, e não aquilo que está no texto de partida”, os textos que Rosa classifica como ‘literais’ “são traduzidos como tais”.
O que se depreende disso tudo, portanto, é que Bizarri vê Rosa como aquele que detém as respostas para as suas inquietações e, nessa constatação, como ressalta Bonatti, configura-se um sentimento de desespero no tradutor que também se vê obrigado a refletir sobre os seus próprios mecanismos de escrita e, não raro, prefere deixar-se ocultar para garantir a primazia dos efeitos de sentido desejados pelo autor.
Para finalizar, caberia comentar que Bonatti consegue evidenciar, em sua brilhante tese, o quão difícil era seguir Rosa em suas aventuras lingüísticas, além de possibilitar vislumbrar a empreitada colossal a que cada tradutor se expunha ao se defrontar com a difícil arte de interpretar as idéias sui generis desse fantástico escritor. Aliás, como ressalta a citada autora, embora os aspectos abordados tenham a ver com um relacionamento ímpar entre um autor e um tradutor específicos, ocorrido em um cenário de identificação e transferência, o fato não deixa de apontar para situações similares, em maior ou menor grau, que podem ocorrer em qualquer momento de qualquer tradução.
(Resenha de: BONATTI, Nícia Adan. Entre o amor da língua e o desejo: a tarefa sem fim do tradutor. Tese de doutorado, IEL/Unicamp, 1998.
Capítulos resenhados: Cap.III - “Uma escrita singular, ou de & sobre Rosa”; Cap.IV “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”.)
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Páginas Ruth Olinda
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Nota do editor:
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Atenciosamente,
Lineu Roberto de Moura
Artculturalbrasil
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Na função de professor de Língua Inglesa e Literaturas, parabenizo este Blog pela edição da matéria contida em Literatura Comparada III. Assunto de grande complexidade que, a princípio, parece fácil e simples, pois se pensa superficialmente que traduzir um texto é passar de uma língua para a outra o poder expressivo desse texto. À primeira vista, parece tudo simples. Neste sentido de literatura comparada a tradução não é uma simples permutação linguística. A viabilidade da tradução apresenta-se ao nível da possibilidade de ultrapassar a diversidade das línguas. E neste ponto surge o problema da relação entre a língua e a realidade por ela referenciada. Pois a língua não relata apenas a realidade, mas, simultaneamente determina a nossa percepção através de moldes mentais, ou seja, a língua não apenas é um veículo, mas também uma condicionante do pensamento e do sentir. Assim, não é nada fácil trabalhar poetas e romancistas brasileiros que, em suas produções, cada palavra adquire um significado quase sempre diverso daquele que o dicionário apresenta. Que ousadia da editora! Congratulações pela abordagem de tão árido e escasso tema!
ResponderExcluirVinícius Alexandre