Memórias de um Morto Adormecido



Professora Maria Granzoto da Silva
Arapongas – Paraná

APRESENTA

MEMÓRIAS DE UM MORTO ADORMECIDO
(José Antonio Jacob)


PREFÁCIO


“Memórias de um Morto Adormecido”, poema em sextilhas decassílabas, de autoria do poeta mineiro José Antonio Jacob, é uma obra poética ímpar!

Não entrarei no mérito dos diversificados gêneros de literatura originariamente espalhados pelo nosso país, pois são tantos estilos concebidos pelos escritores em sua plenitude d’alma, são eivados de figuras de linguagem e resgatam as raízes mais profundas da beleza e da imaginação, a exemplo desta sextilha tão grávida de intelectualidade que transcende a vida de todos nós, mortais!

Entre as criações dos poetas clássicos, que vieram a ser usadas pelos nossos cantadores, estão o soneto, a quadra, a décima, a sextilha em decassílabo e suas variantes.

A sextilha de rima cruzada originou-se da oitava de Ariosto (Ludovico Ariosto, 1474 -1533, Ferrara – Itália). Este estilo de estrofação em oitava rima, criado pelo italiano Ariosto, foi introduzido em Portugal – pelo poeta português Francisco de Sá de Miranda – no século XVI, sendo utilizado por Luís Vaz de Camões na composição da sua imortal obra “Os Lusíadas” (primeira edição publicada por volta de julho de 1572).

É importante assinalar que não se deve confundir sextilhas (estrofes de 6 versos) com sextinas (antigos poemas de forma fixa – compostos de sete estrofes, sendo seis sextilhas e um terceto – que também foram bastante cultivados pelos clássicos). Deveras, os dois vocábulos só ganham identidade morfológica se abandonarmos o aspecto histórico das questões. Essa questão não é o foco deste prefácio.

Confesso que os membros do meu corpo físico ficam quedos todas as vezes em que leio este poema! Porém, a minha memória e cérebro conectam pedaços de conhecimentos, gerando novas idéias, ajudando a tomar decisões diárias, pois me inserem no contexto do poema.

Um “ morto adormecido “ não é um morto destituído de vida! Neste poema ele “narra” sua história e revisita os fatos mais importantes de sua vida, a fim de se distrair na eternidade de suas recordações, ou, quem sabe, corrigir determinadas posturas, ou mesmo viajar em sua imaginação “acima dos telhados de sua cidade”, conforme ele mesmo diz neste poema.

Memória, segundo diversos estudiosos, é a base do conhecimento. Como tal, deve ser trabalhada e estimulada. É através dela que damos significado ao cotidiano e acumulamos experiências para utilizar durante a vida.

As estrofes, com raras exceções, seguem o estilo de versos e rimas utilizado pelos renomados parnasianos brasileiros, sendo constante neste comboio de estrofes a disposição AABCCB, conforme demonstrado abaixo:

Para Nossa Senhora dos Amores,
Que em minha casa mora, eu colho flores.
Para Nossa Senhora da Tristeza,
Que bate à minha porta, humilde e crente,
Com seu menino ao colo, magro e doente,
Eu ofereço o pão na minha mesa.

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O anoitecer descia em minha aldeia
Em rimas de luar da lua cheia
E a noite as recolhia no seu véu.
E de casa eu saía para lê-las...
As longínquas estrofes das estrelas
Que os poetas escreviam lá no céu.

Caro poeta Jacob, sua simples e sincera expressão d’alma e a explicação dos seus versos na visão do seu mundo precisam chegar a todos nós para que aprendamos a rever as nossas “Memórias”, enquanto “adormecidos” ainda estamos!

Maria Granzoto da Silva


O Poema


Memórias de um Morto Adormecido
(José Antonio Jacob)


Escrevo do meu quarto à luz pequena,
Sem mágoa de escrever da minha pena
A um velho coração em desconsolo.
Não abra este caderno quem não queira
Saber do que tratou a vida inteira,
Em pobres linhas, este escriba tolo.

Na tênue claridade do meu teto
Junto das outras sombras me projeto
No bailado das almas desunidas.
E abraço os meus assombros do passado,
Espectros que viveram ao meu lado
Nas ilusões festivas de outras vidas.

E comporto-me bem dentre os pesares
De ter de me curvar em meus vagares
Diante das desventuras da lembrança.
Ao recordar-me assim das coisas mortas,
De abrir janelas, destrancar as portas,
Para a família da Desesperança.

Levanto-me da mesa onde eu escrevo
Essas bobagens, e nem sei se devo
Pegar uma garrafa sobre a pia...
Decido-me: (sinto-me tão sozinho...)
Empunho um copo e o garrafão de vinho
E volto ao quarto em que antes escrevia.

Muito ansioso de me saciar a sede
Ergo um brinde a essas sombras na parede
E sorvo largo gole da bebida...
Isso me reconforta a inspiração
E anima-me a escrever de coração
Uma história de amor da minha vida.

Amei a noite desde muito cedo,
Passei por seus caprichos em segredo
E andei nas minhas mágoas sem sabê-las.
Mas ela, A Velha Dama do destino,
Jogou a minha sorte de menino
Nos búzios intangíveis das estrelas.

Desfruto de um cigarro - e por instantes -
Sopro a fumaça, que já engolira antes,
Sobre o tampo da beira da janela.
E a névoa densa que a friagem embaça
Desenha do outro lado da vidraça
Toda a ironia do sorriso dela.

De tanto me lembrar, perdi a conta,
De outras vezes que de cabeça tonta
Recitei-lhe ridículas quadrinhas.
(E eu sempre lhe dizia outra autoria)
Mas, de verdade, eu sei que ela sabia
Que essas pequenas coisas eram minhas.

Escondo esses refugos na gaveta,
(Aferrolho a fechadura e a maçaneta)
Junto de cartas, orações e selos.
Eles são cópias dos meus desenganos,
Que me acompanham através dos anos
Sem que eu nunca termine de fazê-los.

Não saio mais de casa! Faz um ano
Que eu uso a mesma roupa, o mesmo pano,
A mesma frigideira e o mesmo prato.
E se ando do meu quarto para a sala,
Ouço ao meu lado a assombração que fala:
"Estou tão doente e estou ficando chato!"

Deslizo o dedo sobre o móvel plano,
Risco a poeira da tampa do meu piano
E escrevo notas falsas musicais.
Finjo compor canções imaginadas...
As teclas permanecem mais caladas
E o tom do meu silêncio aumenta mais...

Reviro o mobiliário e qual intruso
Tento encontrar aquilo que não uso,
Esbarro e tropeço e ando a tossir a esmo...
No velho assoalho de verniz escasso
Esquivo-me de ouvir meu próprio passo
Com medo do fantasma de mim mesmo.

No teto o pé de peia me aparece...
Cruz-credo! Tal visão não teme a prece!
Para espantar de casa esse chinfrim
(Que é uma entidade ruim que zomba e some)
Xingo-lhe um nome feio que é o seu nome
E lá de cima ele ainda ri de mim...

Arrasto-me encolhido para o quarto,
De tal hipocondria já ando farto,
Posso acabar fazendo uma neurose.
Vou-me mudar daqui para outros ares
E saio andando pelos calcanhares,
Pois me ferroa os dedos uma artrose!

Ando medindo as minhas pulsações
Com maus pressentimentos de lesões
Nas minhas desgastadas coronárias...
Procuro decifrar o criptograma,
Que vejo em meu eletrocardiograma:
Eu tenho essas doenças imaginárias?!

Confiro tais rabiscos pontiagudos,
Mais me assombro e arregalo os olhos mudos
Numa interrogativa persistente:
“O meu final vai começar por onde?”
Olho o exame... o papel não me responde:
- Que bom destino pode ter o doente?

Sinto frio e me valho do agasalho,
Pareço um velho e pálido espantalho
Enfiado no pijama de flanela...
Vou deitar-me: esta casa está deserta!
E ao levantar a ponta da coberta
A Doença se espreguiça embaixo dela.

Tal qual um sapo que pulou na lama
Eu me reviro dentro do pijama.
(Tomara seja aparição fugaz!)
Sai azar! Dali mesmo eu lhe revido
E depois corro feito um perseguido
E a “Velha Desdentada” vem atrás.

Feito epiléptico eu embolei a língua
E as minhas pernas já se vão à míngua.
Meu último refúgio é uma sala erma.
Fujo em meu velocípede de lata
E a Bruxa me persegue de chibata,
Soltando guinchos pela boca enferma.

Quando uma situação não me convém
No trato com assombrações do Além,
Mais cresce a minha fé numa descrença.
Eu vou fugindo assim dos meus pavores,
Quebrando espelhos pelos corredores
Para não ver o rosto ruim da Doença.

Para meu corpo se manter de pé,
Esqueço o frio e vou fazer café.
Encho a vasilha de água e sou capaz
De derramar o açúcar pelo chão.
Tento acender a chama no fogão
E então me lembro que acabou o gás...

Este é o gás de um amor de sorte incerta,
Que se escapole pela fenda aberta
Nas distrações que a gente lhe oferece.
É o bem que nos conforta as noites frias
E aquece as nossas almas por uns dias,
Depois, sem avisar, desaparece.

É o éter doce de um aceno breve;
O olhar fugaz que nos olhou de leve
Do seu pequeno mundo de veludo.
É a frágil bailarina de cristal
Que mora na caixinha musical
Em cima do balcão do criado-mudo.

Mesmo sabendo que a saudade aperta
Um dia ela notou a porta aberta.
Então se lembrou de outros sonhos seus...
E nem sequer me disse qualquer cousa:
Apenas retirou da sua bolsa
Um lenço e me acenou o último adeus...

Nessa noite morreu o meu amor,
Foi a mais longa dor desse ano em flor...
Expeli um gemido em arremesso;
Bafejei o amargor de um ar revolto;
Do meu peito um lamento pulou solto;
Viraram-se os meus olhos pelo avesso.

Caída a minha vida em desmantelos
Eu quis-me estrangular com meus cabelos,
Pendurando-me numa viga torta.
Ao perceber que a morte ainda não vinha,
Reparei nos ladrilhos da cozinha
E ela jazia ali... E estava morta!

Entre delírios, tais quais fossem de ópio,
Pelas paredes de um caleidoscópio
Imaginei-me andando sobre as cores.
E não acreditando em meu desterro,
Acompanhei chorando o seu enterro,
E - em minhas mãos - ainda levava flores.

Ela estava de ventre para o céu,
Para compor, cobri-lhe com um véu
Banhado em lágrimas de puro amor.
E ela me demonstrando ingratidão
Sorria-se de dentro do caixão,
Parecendo zombar da minha dor.

E então mulher ingrata porque me olhas:
Se com o gume desse olhar desfolhas
Minha ternura que te amou bastante?
Segue os teus passos, que são inseguros,
Mas passe longe dos meus baixos muros
Que o desalento mora mais adiante.

Para Nossa Senhora dos Amores,
Que em minha casa mora, eu colho flores.
Para Nossa Senhora da Tristeza,
Que bate à minha porta, humilde e crente,
Com seu menino ao colo, magro e doente,
Eu ofereço o pão na minha mesa.

E... Vê! Senhora da Desesperança!
Que a tua magra sombra alonga e avança
Soltando excretos de matéria morta,
E mesmo a noite estando muito escura,
Eu vejo por detrás da fechadura
O rastro que ficou na minha porta.

Feito o ébrio que atravessa a madrugada,
Encolhido no canto da calçada,
Espero o novo amanhecer chegar.
É que o sol dissolvendo a escuridão,
Reanima a minha sombra pelo chão
Para que eu tenha enfim com quem falar!

Passei a noite toda na vigília
E entrou por minha porta uma família
De espíritos penados... Maltrapilhos...
O pai vinha na frente em altos brados,
Chicoteando uma dúzia de empregados,
Seguido da mulher e dos seus filhos.

As crianças mendigavam oração;
A mãe vestia um saco de carvão...
E este homem ruim, de aspecto detestável,
(Feito o afilhado que perdeu o cargo);
Não sabia ele que sofrera o embargo
Da sua própria vida miserável.

Como criaturas vindas de um mau sonho,
Juntas, num quadro tétrico e tristonho,
Essas almas sem nomes, sem alcunhas,
Que mais parecem almas desgraçadas,
Foram-se a roer paredes descascadas
Com nítida aflição de quem rói unhas.

Que triste procissão do desencanto!...
Virei o rosto e me sentei num canto
E esperei o cortejo dispersar.
Para esquecer o trauma do fetiche,
Abri um pão e fiz um sanduíche
E ali fiquei comigo a conversar.

Imaginei-me um nobre candidato
A um cargo eletivo e ao peculato,
Para curar de vez meus dissabores...
E no meu paletó tinha reembolso
E a mão de um assessor em cada bolso
Para cumprimentar meus eleitores.

Pobre de mim que me sonhei assim!
O Rei de Quase Tudo... Ai, ai, de mim!
Pois que eu sou uma sombra que se esconde,
Nos óculos, detrás das lentes boas,
Desviando o olhar do olhar de outras pessoas
Feito o bandido que furtou no bonde.

É quando o fértil chão menos espera
Que o inverno beija e emprenha a primavera
Sob as folhas rasteiras, ressequidas.
As almas boas brotam como as flores,
Que crescem no quintal dos desamores
Para instilar amor nas outras vidas.

E diante desse meu cismar insone,
Sentou-se em meu sofá o Raul de Leôni
Com a sua elegância florentina.
E reacendeu a Luz Mediterrânea
Na mesma tênue chama simultânea
Do pavio da minha lamparina.

Depois vi entre as flores de um arranjo
Meu irmãozinho morto (que é um anjo),
Um inocente e doce querubim...
Tal qual um bonequinho de algodão,
Deitado na almofada de fustão,
Esse neném sorria para mim...

Foi quando vi pegada de sapatos
E de magnésio e de salicilatos.
(É um espírito magro com certeza)
Sentado com seus tubos de pastilhas,
Tossindo entre os sonetos e as sextilhas
A escrever versos tristes sobre a mesa.

Cuidadoso de não o incomodar
Descalcei meus pés e calei-me a olhar...
Pois que das almas nobres tenho apreço!
É do Engenho Pau d'Arco este desgosto...
Percebo um desalento no seu rosto:
- Ele é o Doutor Tristeza! - Eu o conheço!

De fora tange o sino da alvorada,
Amanheceu e reage a passarada,
Que em meu telhado ensaia cantoria.
Porém não vou abrir minha janela,
Que essa manhã pode trazer com ela
As tristes sombras para o novo dia.

E ouvindo o bonde deslizar nos trilhos,
Imaginei-me nele, com meus filhos,
Junto às famílias boas da cidade...
No meio da alegria eu vinha quieto
E quando li a placa do trajeto,
Estava escrito: "Amor via Saudade".

Da beira da sacada escuto a missa
E ouço sentado, pois tenho preguiça.
De ouvidos crentes acompanho a prece,
(Uma oração é o ofício que mais prezo).
E quanto mais me benzo e mais me rezo,
Mais ri a assombração que me aparece.

Ouço pardais no forro do telheiro,
Ciscando iguais as aves de terreiro,
Famintos das formigas do meu teto.
E a balançar nos fios de uma aranha
Vejo o pequeno olhar que me acompanha...
Mas, esta criança, pode ser meu neto!

E esta caixa esquecida em minha porta?
Deixei ficar no tempo... É coisa morta!
E veio a tarde e a chuva em estribilho,
O vento entrou dizendo que lá fora
Uma encolhida voz soluça e chora...
Mas, esta criança, pode ser meu filho!

Da lâmpada que eu esqueci acesa
Clareando a solidão na minha mesa,
Derramou-se uma lágrima de luz...
Como um piedoso olhar que me reclama
E que me pede perdoar quem não me ama...
Esta criança só pode ser Jesus!

E dessa criança magra eu sinto medo,
Ela me acena mastigando um dedo.
Meu Deus! - Como me dói essa pilhéria!
Pois que ela me sorri lá da distância,
Suspensa na teia da sua infância,
Sugando o magro seio da miséria.

Consigo andar um passo, arrasto e avanço
E escalo uma cadeira de balanço,
Nela me estiro com tranquilidade.
Não sei se cochilei nesse intervalo
Em que eu voei na garupa de um cavalo
Por cima dos telhados da cidade.

Isto me aconteceu em Juiz de Fora...

Como sempre era noite aberta ao céu
E eu tinha sonhos dentro do chapéu
Que sempre levo nesses meus vagares.
E no meu bolso, além dos meus cigarros,
Havia um poema do Manoel de Barros
E eu pude recitá-lo em plenos ares.

Recordo-me com pena e com saudade,
De quando eu tinha uma pequena idade
E uma vontade de fazer violinhas,
Das caixinhas de ripa envernizadas,
Que eu via no armazém, com goiabadas,
Que eu só provava pelas mãos vizinhas.

E no pomar ao lado eu via as franjas
Das folhas... (por detrás via as laranjas).
E que vontade doida de ir pegá-las...
Em casa havia tangerina e passa,
Duas romãs e uma maçã de massa
Que mamãe se esforçava por lustrá-las.

E agora tenho mais ou menos isto:
Uma imprecisa crença em Jesus Cristo
E uma esperança morta em minha rede.
Um quarto, uma janela, uma cozinha,
Uma cadeira, a minha escrivaninha
E um velho quadro torto na parede.

Por dentro da moldura pendurada,
Na penumbra da tela desbotada
Minha aldeia adormece entristecida.
De noite eu ligo a luz e a claridade
Acende em meu olhar uma saudade
E essas casinhas tristes ganham vida...

Foi dali que me fui aos desamores,
Deixando, lá na chácara das flores,
O arroio dos seus olhos de águas rasas...
E os bordados das sombras amarelas,
Que o entardecer tecia nas janelas
Das paredes sem cor daquelas casas.

O anoitecer descia em minha aldeia
Em rimas de luar da lua cheia
E a noite as recolhia no seu véu.
E de casa eu saía para lê-las...
As longínquas estrofes das estrelas
Que os poetas escreviam lá no céu.

Fico olhando essa tela em meu sonhar:
Essas casinhas baixas sob o luar.
Quanta recordação que isto me dá...
Nessas janelas louras desses poentes
Eu vejo os meus fantasmas ascendentes:
- Os meus antepassados moram lá!









Retirado do Blog Oficial de José Antonio Jacob

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