Ferreira Gullar





 São Luiz - MA
1930
"Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira"
Nascido em São Luís do Maranhão, em 1930, o poeta Ferreira Gullar — no cartório, José Ribamar Ferreira — estreou em poesia em 1949 com o livro Um Pouco Acima do Chão. Em 1951 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como jornalista. As experimentações gráficas contidas em seu livro A Luta Corporal (1954) motivaram sua aproximação com os poetas paulistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, que lançariam mais tarde o movimento da poesia concreta (1956). Inicialmente, Gullar participou do movimento, mas afastou-se em 1959 para criar o grupo neoconcretista. No início dos anos 60, o poeta dedica sua poesia mais a temas sociais e ao engajamento político. Como frutos dessa virada, ele escreve os poemas de cordel João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer e Quem Matou Aparecida?. Em 1964, ele filia-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1971, com o recrudescimento da ditadura militar, partiu para o exílio (Rússia, Chile e Argentina), de onde retornou em 1977. Na Argentina, Ferreira Gullar escreveu o Poema Sujo, livro lançado em 1976, com o poeta ainda no exílio. Na opinião de alguns críticos, Ferreira Gullar é atualmente uma das vozes mais expressivas da poesia brasileira. Um traço forte da obra desse maranhense-carioca é a alta taxa de vida imediata que se pode encontrar em seus versos. E, claro, não me refiro ao trabalho mais marcadamente engajado. Falo de poemas como "Meu Pai" e, a rigor, de toda a seleção apresentada aqui. As modulações variam. Vão desde a suavidade nostálgica e ingênua de "Cantiga para não Morrer" até as reflexões maduras contidas em "Aprendizado" e em "Os Mortos". No conhecido poema "Traduzir-se", o poeta se define: "Uma parte de mim / é só vertigem: / outra parte, / linguagem." No caso de Ferreira Gullar, a linguagem vai além do horizonte das palavras, pois o poeta é também crítico de arte e pinta quadros, faz desenhos e colagens. É o que ele chama de seu "lado B". Alguns de seus trabalhos nessa área podem ser vistos em seu site oficial:
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?



POEMAS PORTUGUESES ( 4 )
Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento
Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?
Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino

Fotografia de Mallarmé

é uma foto
premeditada
como um crime
basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado-
um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá - e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera
da eternidade
sabe-se:
após o clique
a cena se desfez
na rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel rastro
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
alido fundo
da morte
olha
Meu pai
meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
Homem sentado
Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram
Morte de Clarice Lispector
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

Um instante
Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Evocação de Silêncios
O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas
o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas
enquanto lá fora
o sol escaldava
Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família
e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:
quase se partia
Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio
e
negro
no poço
negro
que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa
o que
circulava
no quintal da casa
O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro
e ali se deitava:
uma nesga dágua
um susto no chão
fragmento talvez
de água primeira
água brasileira
Era também açúcar
o silêncio
dentro do depósito
(na quitanda
de tarde)
o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro
energia solar
que vendíamos
aos quilos
Que rumor era
esse? barulho
que de tão oculto
só o olfato
o escuta?
que silêncio era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto ?
(na usina)
alarido
das tardes
das manhãs
agora em tumulto
dentro do açúcar
um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.



Um comentário:

  1. Anônimo16:23

    Um gênio, um homem que sente o concreto além de sua paredes humanas

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