José Antonio Jacob

Juiz de Fora - MG
1950
"Todo sonho é dolorido,
porque nele nós supomos,
que somos (sem termos sido)
o que pensamos que somos."

(José Antonio Jacob)


José Antonio de Souza Jacob, filho do comerciante Antônio José Jacob e de D. Heloisa de Souza Jacob, nasceu em Juiz de Fora (MG) em 11 de fevereiro de 1950 onde realizou seus primeiros estudos, ingressando em seguida no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais "Vianna Júnior”.

No final dos anos 70 iniciou-se no jornalismo como redator da Gazeta Comercial, tendo nessa época se aprofundado no estudo de Filosofia e Letras e logo em seguida foi admitido, por concurso, na área de Recursos Humanos da Companhia Telefônica de Minas Gerais, tendo se aposentado do serviço público em 2005. Desde as primeiras letras o menino José Antonio de Souza Jacob foi estimulado a ler poetas, levado pela mão de seu pai, um comerciante que apreciava poesia, especialmente a dos brasileiros e dos portugueses. Entre as leituras de sua adolescência estão poesias de Raul de Leôni, Mário Quintana, Augusto dos Anjos, António Nobre, Cesário Verde, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira e Charles Baudelaire. Da mãe Heloisa herdou a doçura das palavras e a maneira singela de contemplar a vida sem ser alienado.

Seu estilo simples e requintado de escrever poesia conquistou grandes poetas e escritores, de sua cidade, de quem passou a desfrutar de convivência contínua, mesmo ainda muito jovem. Por sua perfeição na metrificação e na qualidade poética é considerado por muitos que conhecem sua obra como “um dos mais importantes sonetistas da língua portuguesa na atualidade”. Este juizforano, nascido sob o signo de aquário, recusa-se a escolher seu verso do coração e a participar de escolas e grupos literários, preferindo o sossego da vida bucólica nos arredores de Juiz de Fora. A 27 de abril de 2007 foi condecorado e recebeu a insigne Medalha do Mérito Legislativo, Mérito Excepcional em Poesia, na Câmara Municipal de Juiz de Fora. A 06 de julho de 2007 foi sancionado pelo prefeito de Juiz de Fora o "Título Honorífico de Cidadão Benemérito de Juiz de Fora ao Poeta José Antonio de Souza Jacob", por indicação do vereador Bruno Siqueira, com aprovação unânime da Câmara Municipal.(Fragmentos de texto extraído da Revista Comemorativa dos 154 anos da Câmara Municipal de Juiz de Fora - 2007 )


O Beijo de Jesus
(José Antonio Jacob)

Eu era criança, mas já percebia,
O pouco pão que havia em nossa mesa
E a aparência acanhada da pobreza
Que tinha a nossa casa tão vazia.

De noite, antes do sono, uma certeza:
A minha mãe rezava a Ave-Maria!
E ao terminar a prece eu sempre via
No seu olhar uma esperança acesa.

Após a reza desligava a luz,
Beijava o crucifixo e a fé era tanta
Que adormecia perto de Jesus.

Depois que ela dormia (isso que encanta)
Nosso Senhor descia ali da cruz
Para beijar a sua face santa...


Jardim sem Flores
(José Antonio Jacob)

Para acalmar a febre do meu rosto
Encosto a fronte na vidraça fria
E fico a olhar a rua tão vazia,
Pois tudo está sem graça no sol-posto.

Lá fora o vento passa e empurra o dia,
Que vai embora como o rei deposto,
Se para alguns deixou muita alegria
A tantos outros só deixou desgosto.

E, enquanto a tarde inclina-se a este poente,
Eu desço para o meu jardim sem cores
Que está (como eu estou) triste e descrente.

E juntos soluçamos nossas dores:
Eu por estar magoado, velho e doente
E o meu jardim por ter perdido as flores.


Roseiras Dolorosas
(José Antonio Jacob)

Estou sozinho em meu jardim sem cores
E, ainda que eu tenha mágoas bem guardadas,
Cuido dessas roseiras desmaiadas
Que em meu canteiro nunca abriram flores.

Tais quais receosas almas delicadas
Elas se encolhem sobre seus temores
E abortam seus rebentos nas ramadas,
Enquanto vão morrendo em suas dores.

Quantas almas, que por serem assim,
Como essas tristes plantas no jardim,
Calam-se a olhar o nada tão descrentes...

Feito as minhas roseiras dolorosas
Que só olham para a vida, indiferentes,
E não me dão espinhos e nem rosas.


Despercebimento
(José Antonio Jacob)

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante,
E foi além da conta, andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
 Não disse adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir.
E ao retornar ao lar: - Ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir...
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir.


Desenho
(José Antonio Jacob)

A nuvenzinha que no céu passou,
Lépida e alegre, sem nenhum rumor,
Num pé de vento foi e não voltou:
Era uma folha num jardim sem flor...

Virando a folha um sol no céu brilhou
E fez surgir um dia de esplendor;
Veio uma sombra e o dia se apagou:
Era um desenho num papel sem cor...

Por que será que meu rabisco leve,
Que traço em suavidade colorida,
Esvoaça fácil feito um sonho breve?

E tudo o que eu amei foi despedida...
E por que o meu destino não escreve
Uma história feliz na minha vida?


O Vendedor de Bonequinhos
(José Antonio Jacob)

Todo dia na beira da calçada
Uma corda encantada eu estendia
E nela pendurava uma braçada
De bonequinhos feios que eu vendia.

Eram polichinelos que eu fazia
Com trança de algodão à mão desfiada,
No pano das feições não conseguia
Puxar-lhes traços de melhor fachada.

Ao desbotar o azul no fim do dia,
Quando eu os desatava dos alinhos
Desse varal de cordeação brilhante,

Esses desengonçados bonequinhos
Desciam-me nas mãos com alegria
E me davam abraços de barbante!


Quanto Tempo nos Resta?
(José Antonio Jacob)

Nossa vida é uma história mal contada,
Uma vaga novela incompreendida...
Para alguns é um feliz conto de fada,
Para outros uma lenda indefinida.

Vivemos de alvorada em alvorada,
(Que tempo ainda nos resta nessa vida?)
A dar sorrisos largos na chegada
E a lamentar a perda na partida.

Que bom matar o tempo numa rede,
Se ele nos desse a viva eternidade
De um quadro pendurado na parede...

E, enquanto a vida passa e o tempo avança,
Quanta tristeza vai numa saudade,
Quanta alegria vem numa esperança!


Soneto de Natal
(José Antonio Jacob)

Essa mulher que sonha, sofre e chora,
Que o escasso seio estende e o acaricia,
Ao filho magro que seu leite implora,
Podia se chamar Virgem Maria.

O que lhe importa se essa noite é fria
E se além da porta é Natal lá fora,
Se Jesus Cristo nasce todo dia
E está dormindo no seu colo agora?

Ela é Nossa Senhora da Pureza,
Cuida da nossa vida de pobreza
E ora por nós que somos filhos seus...

Essa mulher que sonha, sofre e chora,
Só pode ser, então Nossa Senhora,
A Mãe de todos nós... A Mãe de Deus!


O Pai e a Terra
(José Antonio Jacob)

O pai andava ao sol, à chuva e ao vento
E arava a terra que era o trigo e o pão,
Dela colhia a suor todo sustento,
Depois sorria agradecido ao chão.

De tarde, após cuidar da plantação,
Erguia o seu chapéu ao firmamento
E esse gesto era a forma da oração
Que ele dizia a Deus em pensamento.

Um dia, doente, olhou a esposa e o filho
E contemplou lá fora o campo e a serra
Até o seu olhar perder o brilho.

Depois veio um silêncio de abandono...
A mãe levou o filho num outono
E o pai ficou sozinho sob a terra.


Esperança Morta
(José Antonio Jacob)

Minha ruazinha triste está tão doente
E as casas de janelas apagadas,
O meu jardim morreu na minha frente
E ninguém passa mais nessas calçadas.

Ah, ruazinha... (quem a conhece sente)
Suas cores estão mais desbotadas!...
E para mais piorar a dor na gente
As nuvens lá no céu estão paradas.

Não posso mais sonhar sua lembrança
E ver, lá fora, pela minha porta,
Passar alguém alegre feito criança.

Ao acordar eu vejo, desolado,
Que é uma esperança que amanhece morta
E fica o dia inteiro do meu lado...


Casinha de Boneca
(José Antonio Jacob)

Um dia ela guardou os seus segredos,
Pois que sentiu que o amor ao longe vinha,
Trancou no quarto todos seus brinquedos
E o sonho da boneca e da casinha.

E foi buscar aquilo que não tinha
No alegre faz de conta dos seus dedos,
Contou tristezas e chorou sozinha,
Depois sorriu das mágoas e dos medos.

Passou o tempo e ela seguiu a sina.
E assim, com a decência que ilumina,
Também andou por onde o mal caminha...

Quanta ternura tem essa velhinha,
Que fica no seu quarto de menina,
Brincando de boneca e de casinha!


Crença
(José Antonio Jacob)

Quando firmava o azul e o sol abria
Ao dia a sua bem-aventurança,
O homem bom repartia à vizinhança
Toda espécie de estima que sentia.

E ele acordava cheio de esperança
De vir o dia - após um novo dia -
Só para dar-lhe apreço e cortesia
Na sua ingênua crença de confiança.

Depois curvava a fé que lhe convinha
À soleira da porta e de tardinha
Contava as horas, crédulo a sorrir.

E a noite o recolhia nesse afã
De estar sempre esperando esse Amanhã
E sempre esse Amanhã tardando a vir...


Revelação
(José Antonio Jacob)

Sabeis nada de mim e sabeis nada
Porque venho regresso de outra lida.
Nada me perguntastes na chegada,
Tambám nada eu direi na despedida.

Se eu volto de uma alegre caminhada
 Ou se deixei tristeza na partida...
Pode ser que ao final dessa jornada
Nada ainda sabereis da minha vida.

Não entendeis do céu que nos assiste?
Trago nos olhos grandes o olhar triste,
Tais quais olhos da noite arregalados.

Espiai essas estrelas tão banais:
Tantos mundos distantes revelados,
Mas que aos olhos dos homens são iguais!

(Do livro Almas Raras ed. artculturalbrasil - 2007)


Velho Órfão
(José Antonio Jacob)

Desde cedo esperei o que não vinha
E a minha vida foi perdendo o prazo:
Fui vendo a minha sombra mais sozinha
E o meu destino cada vez mais raso.

E, enquanto andei do quarto até a cozinha,
Pesou-me o passo e me causou atraso,
Desfolharam-se os dias na folhinha
E o tempo foi morrendo em meu ocaso.

Súbitos longos anos tão estreitos,
Sinto vê-los perdidos sem proveitos
E sem proveitos não me presto mais.

Eu sou aquele velho desolado,
Que vive a andar atrás do seu passado
Feito a criança órfã que procura os pais.



Amor-Próprio Ferido
(José Antonio Jacob)

Anos e anos eu sinto as invejosas
Pontadas de ciúmes no meu peito
Ao recitar poesias primorosas
Com versos que eu queria tê-los feito.

Ah! Deus! Eu trago em mim as rancorosas
Mágoas e uma coroa de despeito
Das alheias estrofes luminosas
Que leio na penumbra do meu leito.

Mas tenho ainda uma frase que alimenta
A vingança da dor que me restou...
Caio em delírio e a minha febre aumenta.

E o espectro de loquaz, que acho que sou,
Murmura um verso que a demência inventa
Para um amor que nunca me escutou.


Mais José Antonio Jacob

PÓS-MODERNISMO no Brasil



Página Maria Granzoto
Editora de literatura Brasileira artculturalbrasil
Arapongas - Paraná

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PÓS-MODERNISMO

"Escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível."

(Clarice Lispector)

Já consolidados a partir de 1930, os ideais modernistas vão gradativamente se transformando, até desaparecer por completo aquela visão de ruptura com o tradicional, de destruição dos padrões vigentes.

Novos caminhos são buscados, novos autores surgem. Cada vez mais presente, em todas as obras, a realidade brasileira. Surge a Geração de 45, nova safra de escritores brasileiros.

No Brasil, a partir da segunda metade da década de 40, a ficção e a poesia apresentam um novo estilo, principalmente no que se refere ao tratamento que os escritores dão à linguagem: preocupação com o apuro formal, restauração da dignidade da linguagem e dos temas.

Dentre esses escritores destacam-se: João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Adélia Prado, Autran Dourado, Haroldo de Campos, João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana.


CONTEXTO HISTÓRICO
O período que inicia na década de 40 é marcado por importantes acontecimentos mundiais.

Durante a segunda guerra mundial, de 1939 a 1945, o Brasil procura manter-se neutro. É, então, presidente do País o ditador Getúlio Vargas, que comanda o Estado Novo. Porém o ataque-surpresa dos nazistas a cinco navios mercantes brasileiros, em agosto de 1942, obriga o Brasil a abandonar a neutralidade e posicionar-se em face do conflito. Há o rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com a Alemanha, a Itália e o Japão. Em meados de 1944, sob o comando de Mascarenhas de Morais, parte para a Itália a Força Expedicionária Brasileira. Finda a guerra, o País perde 2 mil soldados e 37 navios. Mas, com os Aliados, é vitorioso contra a opressão e a violência. Em 1945, volta a reinar a paz mundial.

Com a vitória dos Aliados ao fim da segunda grande guerra, a permanência da ditadura de Getúlio Vargas torna-se insustentável. Em 1945, o ditador renuncia e retira-se para a sua estância em São Borja (RS). A chefia da Nação é entregue ao presidente do Supremo Tribunal Eleitoral, o ministro José Linhares, até que um novo presidente fosse eleito: Eurico Gaspar Dutra. Uma ampla anistia política assinala a redemocratização do País e formam-se, então, novos partidos.

Ecos da grande guerra e da ditadura nacional manifestam-se nos poemas de Carlos Drummond de Andrade, "A Rosa do Povo", e no livro de João Cabral de Melo Neto, "O Engenheiro", ambos publicados em 1945.

O estilo chamado Pós-Modernismo ainda não é aceito por todos os estudiosos. Alguns acreditam que após a 2ª Guerra Mundial (1945) o tempo Pós-Moderno já seria uma realidade; para outros, ainda não saímos da Modernidade (e estaríamos vivendo uma 3ª fase do Modernismo).

Na literatura brasileira podemos perceber características que se diferem do Modernismo após a década de 50. Há uma intensificação dos traços Modernistas no Movimento da Poesia Concreto e Instauração-Práxis. A transição do Modernismo para o Pós-Modernismo se evidencia no Tropicalismo e no Movimento do Poema-Processo. Os traços pós-modernos podem ser encontrados mais acentuadamente em alguns textos da poesia marginal e na prosa de determinados autores contemporâneos.

A poesia marginal é feita por jovens que buscam uma liberdade de criação e de palavras, além de uma liberdade editorial (pois publicam seus textos de forma artesanal ou em folhetos). "Por sua própria natureza, a produção 'marginal' ou 'independente' é bastante volumosa e diversificada, ainda que alguns de seus autores já tenham, em 1987, obras publicadas pelas editoras convencionais". Podemos ainda citar entre os movimentos de Vanguarda do Pós-Modernismo: o Neoconcretismo, a poesia ligada à revista Tendência, a produção poética de Violão de rua e os cultores da Arte Postal.

As principais características desse estilo são: intensificação do ludismo na criação literária, utilização deliberada da intertextualidade, ecletismo estilístico, exercício da metalinguagem, fragmentarismo textual, na narrativa há uma autoconsciência e auto-reflexão, radicalização de posições anti-racionalistas e antiburguesas.

Os principais autores desse estilo literário são: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Nelson Rodrigues, Adélia Prado, Autran Dourado, Augusto e Haroldo de Campos, João Ubaldo Ribeiro, Mário Quintana, entre outros...





INTRODUÇÃO
O que existe em um texto para que se possa apontá-lo ou descartá-lo como pós-moderno? Basta que seja contemporâneo ou este novo momento possui características próprias?

Há uma epígrafe do escritor Umberto Eco que abre o capítulo O PÓS MODERNISMO, no livro de Domício Proença Filho, e pela qual é possível aproximar-se desta questão. Segundo U. Eco, “A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado já não pode ser destruído, porque sua destruição leva ao silêncio, que deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente.”

Refletindo sobre a opinião acima, percebe-se que, agora, já não mais interessa destruir qualquer tradição, pois, além do seu reconhecido valor, para o Brasil, a destruição do passado, mesmo que recente, incluiria o esquecimento da árdua e importante conquista que foi a impregnação do sentimento nacionalista na cultura e nas artes.

O modernismo desdobrou historicamente uma dialética que levou do impulso à dessacralização a um processo de progressiva ressublimação da linguagem artística. Nos anos 20, o modernismo emergente era inconoclasta e vanguardista, parodístico e realista. Ao longo do processo de ressublimação estética (a poesia como expressão elevada e modelar), as obras modernistas tornaram-se clássicos no cânone literário da língua brasileira. Tal dialética histórica inerente ao modernismo não é exclusividade brasileira. Pode-se mesmo considerá-la uma lei geral do modernismo na literatura universal. Onde houve modernismo, ocorreu essa dialética. A conquista do sublime literário pela poética modernista corresponde à sua progressiva pedagogização, oficialização, daí porque se usa a palavra cânone e a expressão modernismo canônico.

Existe, portanto um conflito, uma tensão, entre dessacralização e ressacralização, dessublimação e ressublimação, tendências vanguardistas versus tendências classicizantes, polarização intrínseca ao conceito estético-histórico de modernismo, correspondente à dua-lidade entre a dimensão extra ou antiinstitucional e a dimensão institucional da arte. Por ser inerente ao conceito de modernismo, tal tensão é estrutural, tem uma dimensão sincrônica. O melhor exemplo dessa sincronicidade está na poesia de Baudelaire, com seu perma-nente movimento entre o “baixo” e o “elevado”, o baixo (ou vulgar) sempre enunciado contra o pano de fundo de uma nostalgia ou de uma aspiração ao sublime. A poesia do francês Baudelaire é assim um emblema de modernidade clássica, representando figurativamente o que ocorre historicamente, diacronicamente, em cada poesia modernista nacional integrada ao sistema literário universal no século XX.

E assim também o nosso modernismo, que vê completada sua dialética na fase canônica do alto modenismo, configurando-se enquanto totalidade, enquanto objeto bem determinado. Sim, porque por sua vez é inerente ao conceito de alto modernismo a noção de que corresponde ao momento histórico de “completude”, de “fechamento” da estética modernista. Noção que remete à lógica derridiana do suplemento, sempre trazida à baila pelo crítico brasileiro e mestre de todos nós em matéria de pós-modernidade, Silviano Santiago.

Há um momento em que o modernismo já não pode mais ser completado, de modo que a repetição de traços modernistas (prefixo pós como continuação) passa a dar-se num espaço fora, propício a deslocamentos (prefixo pós como descontinuidade). Nesse sentido, a obra de João Cabral desde O engenheiro até A Educação pela pedra pode ser lida como representando ao mesmo tempo o apogeu e o encerramento (o “fechamento” num sentido de lógica estética) da estética modernista.

E por isso, na literatura brasileira, a década de 70 já pode ser considerada pós-modernista, pois o campo em que nela se produz tem por horizonte o modernismo não mais enquanto projeto ainda em curso (como defende o filósofo alemão Habermas), mas enquanto totalidade bem determinada.

Segundo Ítalo Moriconi, “No debate universitário brasileiro, o tema do pós-moderno foi introduzido na USP pelo número 7 do periódico Arte em Revista (1983), em que nomes conceituados como Otília Arantes (Filosofia) e João Adolfo Hansen (Literatura) apresentaram o projeto de resgate da precedência latino-americana, através da releitura de textos dos anos 60 em que o crítico Mário Pedrosa se utilizara do termo “pós-moderno” para definir o processo criativo do artista brasileiro Hélio Oiticica. A revista publicava também, no mesmo número, traduções de trechos de alguns dos protagonistas do debate pós-moderno no cenário internacional à época: o filósofo alemão Jürgen Habermas, o filósofo francês Jean-François Lyotard, assim como o teórico alemão Peter Bürger, autor de Teoria da Vanguarda, um dos mais influentes textos acadêmicos sobre o assunto, publicado em 1974 e até hoje não traduzido no Brasil.

Em 1985, a revista Novos Estudos Cebrap publicou a primeira tradução brasileira de um texto do crítico literário marxista americano Fredric Jameson sobre “pós-modernismo e lógica cultural do consumo”. Graças ao prestígio de Jameson e da revista inglesa New Left Review entre os cientistas sociais marxistas e pós-marxistas brasileiros, o tema da pós-modernidade passou a ser cada vez mais abordado no universo da sociologia USP. Esse tema também se espraiou depois, já nos anos 90, na bibliografia brasileira da área de Educação.

No Rio de Janeiro, o Professor Domício Proença Filho e o Escritor Jair Ferreira dos Santos publicaram em 85 e 86, respectivamente, pequenos opúsculos de divulgação sobre o pós-modernismo, hoje esgotados, nas coleções Princípios da Editora Ática o primeiro, e Primeiros Passos, da Brasiliense, no segundo caso. Mencione-se também o manual Moderno/Pós-moderno, do professor de Comunicação de São Paulo, que tem tido sucessivas reedições (ed. Iluminuras).

Finalmente, no ano 1987, o tema foi abordado de maneira densa e sistemática nos cursos de pós-graduação de intelectuais do porte de Eduardo Portella e Heloísa Buarque de Holanda, na UFRJ, e Silviano Santiago, na época lecionando na PUC. Foi nesse momento que eu mesmo travei meu primeiro contato com o tema, ao fazer meu Doutorado, onde defendi tese sobre o assunto. Silviano e Heloísa foram os introdutores das abordagens de Lyotard, Jameson, e também do autor alemão Andreas Huyssen, em todas as áreas de letras e comunicação da Universidade brasileira que não eram satélites da USP.

Silviano publicara em 1982 o romance-diário Em Liberdade, hoje considerado pela crítica universitária, tanto a brasileira quanto a brasilianista, marco inaugural da prosa pós-modernista brasileira. Se há um contexto pós-modernista nos anos 70 e se há elementos pós-modernistas em textos de prosa ficcional brasileira publicados antes dos 80, não há dúvida que no Em Liberdade encontramos um conjunto muito mais claro do que seria uma proposta pós-modernista. Antes disso, vejo com bom exemplo de prosa pós-modernista o livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Silviano também escreveu diversos ensaios críticos sobre o assunto, como “O narrador pós-moderno’, incluído no livro As Malhas da Letras, de 1987. Vale acrescentar que ele participara de oficinas literárias com John Barth quando ainda lecionava nos Estados Unidos, de modo que estava acompanhando o debate desde seu nascedouro.”
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector

A hora da estrela é também uma despedida de Clarice Lispector. Lançada pouco antes de sua morte em 1977, a obra conta os momentos de criação do escritor Rodrigo S. M. (a própria Clarice) narrando a história de Macabéa, uma alagoana órfã, virgem e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa.

É pelos olhos do narrador e através de seu domínio da palavra que a existência e a essência são expostas como interrogações. Tal presença masculina retrata um universo de fragmentos, onde o ser humano não é respeitado, mas desacreditado nessa reconstrução de uma realidade mutilada.

Em A hora da estrela Clarice escreve sabendo que a morte está próxima e põe um pouco de si nas personagens Rodrigo e Macabéa. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de ouvir a Rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, como Clarice.

A despedida de Clarice é uma obra instigante e inovadora. Como diz o personagem Rodrigo, estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. É Clarice contando uma história e, ao mesmo tempo, revelando ao leitor seu processo de criação e sua angústia diante da vida e da morte.
ESTRUTURA DA OBRA
É uma obra composta de três histórias que se entrelaçam e que são marcadas, principalmente, por duas características fundamentais da produção da autora: originalidade de estilo e profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente comuns.

A linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e outras figuras de estilo. Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da autora a construção de frases inconclusas e outros desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.
FOCO NARRATIVO
Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a palavra e o fazer narrativo. Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a 'Dedicatória do autor', aparecem os treze títulos que teriam sido cogitados para o livro.

O recurso usado por Clarice Lispector é o narrador-personagem, pois conforme nos faz conhecer a protagonista, também nos faz conhecê-lo. Ele escreve para se compreender. É um marginalizado conforme lemos: "Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos homens". Quanto à sua relação com Macabéa, ele declara amá-la e compreendê-la, embora faça contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.

Macabéa, a protagonista, é uma invenção do narrador com a qual se identifica e com ela morre. A personagem é criada de forma onisciente (tudo sabe) e onipresente (tudo pode). Faz da vida dela um aprendizado da morte. A morte foi a hora de estrela.

O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks passado para o presente e vice-versa.iluminando o passado, há idas e vindas do
Há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:

1. A metanarrativa - Rodrigo S. M. conta a história de Macabéa: Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua.

2. A identificação da história do narrador com a da personagem - Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos. Se por um lado, ele vê a jovem como alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe, de gênero e de consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e Macabéa se confundem.

3. A vida de Macabéa - O narrador conta como tece a narrativa.

Narrador e protagonista, inseridos em uma escrita descontínua e imprevisível, permitem ao leitor a reflexão sobre uma época de transição, de incoerência, como um movimento em busca de uma nova estruturação da obra literária similar à insegurança, à ansiedade e ao sofrimento. O tema é oferecido, socializando a possibilidade de ruptura.

O narrador revela seu amor pela personagem principal e sofre com a sua desumanização, mas, também, com a própria tendência em tornar-se insensível.

O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa. O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações.
ESPAÇO/TEMPO
O Rio de Janeiro é o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O "lado de dentro" das criaturas é o que interessa aos intimistas.

Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já havia morrido - possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos - mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.

Embora a história de Macabea seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito humor e ironia. O próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia (tragicomédia).
PERSONAGENS
Macabéa: alagoana, 19 anos foi criada por uma tia beata que batia nela (sobre a cabeça, com força); completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. A principal característica de Macabéa é a sua completa alienação. Ela não sabe nada de nada.

Feia, mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas (Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista da história. Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles.

Olímpico: Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava como "operário": era um "metalúrgico". Ambicioso, orgulhoso e matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia; e um dia queria também ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue.

Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final.

Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo.

Madame Carlota: É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa. Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons, diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa. Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar.

Outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora.
ENREDO
Macabéa (Maca) foi criada por uma tia beata, após a morte dos pais quando tinha dois anos de idade. Acumula em seu corpo franzino a herança do sertão, ou seja, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheia de si e da sociedade. Segundo o narrador, ela nunca se deu conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.

Ignorava até mesmo porque se deslocara de Alagoas até o Rio de Janeiro, onde passou a viver com mais quatro colegas na Rua do Acre. Macabéa trabalha como datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, que fica na Rua do Lavradio. Tem por hábito ouvir a Rádio Relógio, especializada em dizer as horas e divulgar anúncios, talvez identificando com o apresentador a escassez de linguagem que a converte num ser totalmente inverossímil no mundo em que procura sobreviver. Tinha como alvo de admiração a atriz norte-americana Marilyn Monroe, o símbolo social inculcado pelas superproduções de Hollywood na década de 1950.

Macabéa recebe de seu chefe, Raimundo Silveira, por quem ela estava secretamente apaixonada, o aviso de que será despedida por incompetência. Como Macabéa aceita o fato com enorme humildade, o chefe se compadece e resolve não despedi-la imediatamente.

Seu namorado, Olímpico de Jesus, era nordestino também. Por não ter nada que ajudasse Olímpico a progredir, ela o perde para Glória, que possuía atrativos materiais que ele ambicionava.

Glória, com certo sentimento de culpa por ter roubado o namorado da colega, sugere a Macabéa que vá a uma cartomante, sua conhecida. Para isso, empresta-lhe dinheiro e diz-lhe que a mulher, Madame Carlota, era tão boa, que poderia até indicar-lhe o jeito de arranjar outro namorado. Macabéa vai, então, à cartomante, que, primeiro, lhe faz confidências sobre seu passado de prostituta; depois, após constatar que a nordestina era muito infeliz, prediz-lhe um futuro maravilhoso, já que ela deveria casar-se com um belo homem loiro e rico - Hans - que lhe daria muito luxo e amor.

Macabéa sai da casa de Madame Carlota 'grávida de futuro', encantada com a felicidade que a cartomante lhe garantira e que ela já começava a sentir. Então, logo ao descer a calçada para atravessar a rua, é atropelada por um luxuoso Mercedes Benz amarelo. Esta é a hora da estrela de cinema, onde ela vai ser "tão grande como um cavalo morto".

Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”. Há uma situação paradoxal: ela só nasce, ou seja, só chega a ter consciência de si mesma, na hora de sua morte. Por isso antes de morrer repete sem cessar: “Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”.

Por ter definido a sua existência é que Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos transeuntes entende: “Quanto ao futuro.” (...) “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.”

Com ela morre também o narrador, identificado com a escrita do romance que se acaba.
COMO ENTENDER O PÓS-MODERNISMO?
O pós-modernismo como categoria de periodização estético-histórica, deve ser contrastado num primeiro momento com o alto modernismo em sentido estrito e não com o modernismo em sentido lato.

Assim, o pós-modernismo pode ser entendido como conjunto de traços estilísticos e culturais que vem depois do alto modernismo, manifestando um esgota-mento, crise ou superação de aspectos importantes da modernidade estética como um todo, na complexidade de sua dialética histórica. Metodologicamente falando, para um trabalho crítico-histórico, trata-se de analisar as relações de continuidade e descontinuidade entre os mais representativos produtos poéticos e ficcionais das gerações 70 e 90 e o cânone moderno. Na avaliação das continuidades e descontinuidades, saber distinguir a pulsão alto-modernista da pulsão vanguardista. Lembrando sempre que em história da arte o prefixo “pós” indica usualmente período ainda dominado por certa estética totalizadora que, no entanto começa a sofrer o assédio de estéticas contrárias, derivadas e desviantes em relação ao léxico dominante. Creio que é assim que se pode ler “pós-romantismo”.

A poesia marginal dos 70 retoma o modernismo heróico dos anos 20 como uma reação iconoclástica ao caráter escolar, disciplinarizado, do modernismo canônico.

Alguns nomes-que-vão-ficando do momento 70: Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Chico Alvim, Sebastião Uchoa Leite, Adelia Prado, Torquato Neto, Armando Freitas Filho, Waly Salomão, Chacal, Leila Micolis, Roberto Piva, Hilda Hilst, Afonso Henriques Neto, Carlos Saldanha, Angela Melim, Geraldo Carneiro, Leonardo Fróes, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, dentre outros . Poetas, universitários e cabeludos eram “caras” que imprimiam no álcool do mimeógrafo as suas poesias originais. Foram poemas instigantes, carregados de coloquialidade e objetividade.

A poetisa Ana Cristina César além de escrever poemas também redigia para jornais, se suicidou aos 31 anos, em 1981. Cacaso faleceu em 1987, aos 43 anos, após uma parada cardíaca. Paulo Leminski, que adorava experimentar a linguagem dos poetas concretos, faleceu em 1989.

É importante enfatizar que não foi um movimento poético de características padronizadas, foi um momento de libertação dos termos e expressão livre num momento de repressão política nos fins da década de 60. A poesia foi levada para as ruas, praças e bares como alternativa de publicação, alternativa que estivesse longe do alvo da censura. Tudo era considerado suporte para a expressão e impressão das poesias, fosse um folheto, uma camiseta, xerox, apresentações em calçadas, etc.



Trecho de um poema sem título de Paulo Leminski :
“Eu hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma idéia clara
só existe um segredo
tudo está na cara.”
A presença do cânone era um dado que essa geração, inclinada a ideais e práticas contraculturais ou transgressivas, teve que enfrentar artisticamente. Os anos 70 em cultura começaram com a ressaca de 1968. Em 1969, o escritor americano John Barth nomeou o pós-modernismo de “literatura da exaustão”. Exaustão diante da magnificência auto-suficiente do cânone. Exaustão também diante dos experimentalismos vanguardistas, que começavam a não chocar mais ninguém que tivesse um mínimo de informação estética atualizada no contexto de um mundo ocidental globalizado em processo de profunda transformação na esfera dos valores morais e comportamentais.

O que acrescentar ao edifício da cultura nacional, numa época de contracultura no mundo e ditadura militar no país (e sua contrapartida, a experiência da guerrilha)?

Quem precisava de mais poetas depois de Bandeira, Cecília, Drummond, Cabral? “Ele já não disse tudo, então?”, perguntava Ana Cristina César, referindo-se a Drummond.

A poetisa, expressão maior da geração 70, ecoava a sensação que, na geração anterior, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna chamara de sensação de “emparedamento”. “Minha geração de poetas é emparedada de um lado por Drummond e Cabral e de outro pelos concretos”, bradara Affonso Romano, verbalizando o nó da questão: o impasse criativo entre aqueles que não podiam fazer nada melhor que basicamente repetir o alto modernismo e aqueles outros (os concretistas) que resolveram partir para uma guerrilha de vanguarda cultural, em que a poesia era pesquisa poética e se fundia com as artes visuais e com a exploração de novas tecnologias. Mas houve também a entrada no cenário da cultura pop e da MPB como fontes principais de poesia nessa época, transcendendo e até colocando em pano de fundo a poesia estritamente literária, a “poesia de livro”, como a chamava Waly Salomão. Os grandes poetas brasileiros inspiradores de quem começava a escrever nos anos 70 eram Caetano e Chico e todos os demais divinos ícones de nosso panteão lírico-performático.
Limites do Amor

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.


Quanto ao concretismo, colocara-se no cenário nacional dos anos 50 como um anti-modernismo, no momento mesmo do apogeu modernista. Ir contra os princípios da poética modernista canônica era reivindicando pelos concretistas como modernidade ainda mais moderna, mais cosmopolita. O concretismo operou uma intervenção que mixou o vanguardismo construtivista-serialista bem típico dos anos 50 a certo eruditismo alternativo, buscando impor Ezra Pound como referência fundamental na poesia brasileira. Com base em sua leitura de Pound, ao qual veio a acrescentar-se o Mallarmé dos “brancos da página”, o concretismo logrou criar uma pedagogia poética alternativa: um paideuma, para usar seu vocabulário da época. Um cânone, em suma.

Por causa disso, o pós-modernismo poético, no seu conceito especificamente brasileiro, significa não apenas “depois do alto modernismo”, mas também um “depois da proposta concretista”. Em ambos os casos, esse “depois” vem combinando elementos de continuidade e descontinuidade em relação a essas duas estéticas dominantes, o modernismo canônico e o vanguardismo concretista.

PÓS-MODERNISMO EM DUAS FASES

Inicialmente, cabe ressaltar que mesmo como categoria de periodização literária, “pós-modernismo” diz mais respeito a contexto cultural e histórico, que propriamente a traços estilísticos, embora uma estilística pós-moderna seja possível e na verdade constitua boa parte do debate, em cada área artística específica. Do ponto de vista da marcação cronológica do fim do século estético-literário, tenho por datas referenciais os anos de 1968 e de 1984 para assinalar a existência de duas fases no pós-modernismo brasileiro.

“Na distinção entre elas, inspiro-me na maneira como Andreas Huyssen formulou a questão da periodização. Para mim, historiograficamente falando, a marcação cronológica é mais importante que a terminologia. Portanto, se por decreto se quisesse mudar o rótulo de pós-modernismo para qualquer outro, isso não abalaria muito as minhas hipóteses interpretativas. Considero, porém importante periodizar o fim do século passado em função de debates intelectuais substantivos. O debate sobre a pós-modernidade sempre me pareceu e ainda me parece estratégico, embora de lá para cá outros debates tenham vindo juntar-se a ele em pertinência, como os estudos culturais, o debate sobre globalização, a questão do pós-colonial e do pensamento diaspórico. Esses debates, internacionalizados nos anos 90, em geral representam desdobramentos em relação ao debate sobre o pós-moderno. Nas áreas humanísticas, a vida intelectual e universitária hoje transcorre em torno de debates e isso em si é um traço pós-moderno. O debate é uma estrutura dinâmica de interlocução pós-disciplinar, trans-disciplinar, hiper-politizada. A intensificação do caráter político do saber humanístico é outro traço pós-moderno.” (Ítalo Moriconi)

O ano de 1968 define o início de um primeiro momento pós-modernista, ainda contracultural, em que se combinam elementos de vanguardismo e pós-vanguardismo. Já o segundo momento, iniciado de maneira genérica nos anos 80, é plenamente pós-vanguardista, pós-contracultural, intelectualmente marcado pela superação acadêmica de diversos aspectos do estruturalismo e do marxismo e politicamente marcado pelo fim do poder soviético. Se essa data marca o ponto de chegada e de apogeu de toda uma cultura revolucionária e vanguardista típica do século passado, por outro reapresenta a virada para “outra coisa”, uma espécie de “terceira via” cultural, marcada pelo ceticismo pragmático em relação aos mitos políticos do século e dominada pelo fato de que a totalidade da experiência cultural e sensorial-comportamental se vê invadida ou redefinida pela cultura pop global-local. Se tomarmos o pop como um termo referente ao que o marxismo chamaria de superestrutura, deve-se enfatizar que a “estrutura” no caso é um capitalismo de consumo. O pop é aqui definido em função de uma certa estrutura técnica que define a circulação de cultura. É a cultura que expressa essa estrutura técnica. A estrutura técnica é simultaneamente estrutura social, estrutura psicossocial.

O ano de 1984, para alguns escritores, demarca a segunda fase do pós-modernismo. Foi o ano da campanha pelas eleições diretas, ano em que pela primeira vez na história brasileira manifestou-se efetivamente cidadania majoritária e autônoma, no sentido clássico liberal da palavra. A partir daí, desencadeou-se a lenta e progressiva redemocratização, num processo que começou com a eleição de Tancredo Neves em 1985, passou pela nova Constituição do país em 1988, pela derrubada de um presidente pelo próprio povo que o elegera (Collor, 1992) e consolidou-se finalmente ao longo dos sucessivos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique, até a eleição para um governo nacional de partido nascido já nesse novo Brasil pós-diretas.

No entanto, embora seja importante situar o contexto histórico-político local do pós-modernismo, cabe também voltar ao domínio estritamente estético, até porque a evolução das formas poéticas não pode ser entendida fora de uma cultura estética ela própria em constante transformação. No pós-modernismo, o estético circundante inclui necessariamente o “pop”.

Do ponto de vista da sensibilidade poética entre os letrados, tanto profissionais (universitários) quanto amadores (aqueles que amam), a década de 80 foi de acúmulo, de cultos intensos e leituras intensas de poetas estrangeiros que até então não tinham circulado muito no Brasil. Em matéria de cultos, a década de 80 elegeu como seus grandes objetos de devoção as obras de Ana Cristina Cesar, Adélia Prado e Manoel de Barros. Foi uma década de superação do cânone tradutório dos concretistas, apesar de se ter mantido e ampliado a noção legada pelo concretismo da importância da tradução de poetas estrangeiros de ponta para o desenvolvimento da cultura poética em nosso país. A superação (incorporação/descarte) do (paradigma) tradutório concretista se deu pela preferência por poetas como, no campo anglo-saxônico, Elizabeth Bishop, John A-shbery e Sylvia Plath, em detrimento de eleitos dos concretos como Ezra Pound e e.e.cummings. No campo francês, subiu a cotação de Artaud, Prévert, Laforgue, Rimbaud, em detrimento de Mallarmé. Houve também a volta ou permanência triunfante de Baudelaire como referencial francês básico, reflexo provavelmente do enorme interesse da tribo dos letrados brasileiros pela obra do crítico e filósofo judeu-alemão Walter Benjamin. Pode-se dizer que o Borges poeta é hoje uma paixão presente no coração de boa parte do publico leitor de poesia no Brasil. Rilke também foi bastante revalorizado, a partir das traduções de Augusto de Campos.

A cena pop nos 80 apresentou uma renovação instigante. Foi uma década nova-iorquina, com David Byrne, B-52’s, Philip Glass, Laurie Anderson, The Clash. No Brasil, a MPB se transmudou em pop. Até o samba se popificou, com suas levadas de empolgação, tipo Zeca Pagodinho. O acontecimento mais importante foi o surgimento do Rock Brasil. Paralamas, Cazuza e Barão Vermelho, Titãs e Arnaldo Antunes e Tony Belloto. Fenômeno que atingiu dimensões mega e substituiu de vez as importações, pois o rock nacional passou a ser mais consumido que o rock americano. Suas letras “fizeram a cabeça” de gerações inteiras, como antes a alta poesia lírica dos Caetanos e Chicos. Assim como a geração ainda literária nos anos 50 e 60 viu-se poeticamente espelhada nas obras dos modernistas, principalmente Drummond, nos 60-70 tivemos gerações formadas pela poesia da MPB e nos 80 e 90 o portador do fogo foi esse pop rock brasileiro.
Os anos 80 foram a década yuppie que enterrou os valores da contracultura e revalorizou o saber, agora empacotável como produto de consumo cultural, pedagógico. Da colaboração entre o universo pop e o registro erudito, emergiu um revigoramento da cultura canônica, dos grandes clássicos, do prazer de ler romances, das exposições de arte européia antiga ou moderna sob a forma de grandes espetáculos do saber em escala global. O começar diferente dos anos 80 deu-se mais na esfera das condições de produção e circulação do poema que na configuração de novas escritas, de novos universos ou estratégias de linguagem. De maneira análoga ao ocorrido nos demais campos da arte, tanto no plano nacional quanto internacional, foi um período marcado pela normalização pós-vanguardista dos circuitos. Entenda-se pela expressão o desprestígio das ideologias e práticas de tipo transgressivo, em favor de uma renovada e crescente preocupação com o caráter funcional e pedagógico das manifestações artísticas. O mercado, a universidade, os museus absorveram o experimentalismo como peça do sistema e capítulo esclarecido das narrativas sobre cultura.


Os anos 80 são importantes como o contexto que explica o surgimento de uma nova e brilhante geração de poetas nos anos 90. No arco que une e desune os anos 70 e 90, vemos uma trajetória que levou da contracultura à reação cultural. Com a saída de cena do socialismo real soviético, o neoconservadorismo e o neoliberalismo polarizaram o debate político. Em cultura, a onda neoconservadora, e o declínio relativo dos apelos transgressores, favoreceu a aproximação, até então inédita, entre instituições tradicionais do saber literário, e da poesia a elas ligada, e a instituição universitária.

Um dos elementos da poesia marginal deixado de lado pela geração 90 foi o coloquial desleixado. A geração 70 escrevia num coloquial chegado à gíria de época. A poesia de Paulo Leminski, por exemplo, é toda escrita em gíria jovem dos 70, como vimos acima. Os poetas dos 90 optam por um coloquial mais “nobre”, livre da gíria, como vemos em Paulo Henriques Britto e em Antonio Cícero, dois veteranos dos 70 que somente encontraram seu público nesse novo contexto dos 90. Em outros casos, ocorre mesmo a opção por linguagens mais preciosistas, como o primeiro Carlito Azevedo e uma poetisa forte como Cláudia Roquette-Pinto.

RÓI
(Carlito Azevedo)

Rói qualquer possibilidade de sono
essa minimalíssima música
de cupins esboroando
tacos sob a cama
imagino a rede de canais
que a perquirição predatória
possa ter riscado
pelo madeirame apodrecido
se aguço o ouvido
capto súbito
o mundo dos vermes

In Sublunar (1991-2001)
Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2001



Opaco
(Claúdia Roquette-Pinto)

Obscura aurora desse corpo
na luz desacordada.
O que, além de mim, desperta
no quarto vago, vaga
entre a onda iluminada sobre a hortênsia
e o pensamento, opaco:
mais um dia a atravessar do avesso,
comendo pelas beiradas
a papa fria das conversas,
as caras de tacho e borracha
chapadas contra o meu céu
(onde bóiam as coisas de verdade:
espirais de fogo,
sua boca contra a minha,
as palavras do sonho, que perdi).



Exploração total do cisco
(Horácio Costa)

Vê-lo por todos os lados
como se fosse uma galáxia
sobre a mesa ou a lapela,
refulgindo branco ou gris
em sua intromissão ao
polido, ao virginal, contra
o lado ideal que tenta
narrar tudo sobre a vida.
O cisco: projetar-lhe arcos
triunfais e Boileaus
convidar para solenes
comporem-lhe elogios,
e entregar-lhe o Leão de Ouro,
o Oscar e, pour quoi pas?,
também
o estimado
Jabuti.
Tudo isto feito, olvidá-lo:
um cisco é um cisco é um cisco,
apenas
um
cisco.

(São Paulo, 24.VIII.99)



Há linguagens sofisticadamente alegóricas, como em Horácio Costa, e há registros mais idiossincráticos, como nos versos de Lu Menezes ou Valdo Motta. É grande a diversidade nas buscas de caminhos mais elaborados, alternativos ao coloquial chão dos 70. Predomina o poema curto, mas há vozes remando contra a corrente, como a de Alexei Bueno, que insiste no verso longo, prolífico, prolixo.


As brincadeiras sérias
(Waldo Motta)

Por amor, sou aio e amo
de quem amo, e o persigo,
me abomino na lama,

enfrento qualquer perigo.
Se amo mesmo quem amo
sou meu próprio inimigo,

pois matei o que morreu
em mim ao me dar sem dó
à mó que moeu meu eu.

Só pode amar quem moeu
seu eu na amorosa mó,
e desse pó renasceu.

WAW (1982-1991)


HISTORIA
(Alexei Bueno)

Não é minha esta casa, aí entrarei no entanto.
Quebrarei o portão, marcharei entre as flores,
Encherei meu pulmão com os estranhos odores
Do jardim adubado a sêmen, sangue e pranto.

Porei a porta abaixo, enfrentarei o espanto
Dos vultos me fitando; e apesar dos bolores
Envergarei sem medo os trajes de idas cores,
Nas suas mãos beberei, entoarei seu canto!

Com os corpos rolarei de milhões de mulheres
Sem corpo. Ei-los que já me saúdam e me aclamam,
Meus perdidos avós, desamparados seres.

Estendem-me suas mãos como a um filho que os salva.
Deles vim, mas é a mim que eles agora clamam
A vida, como a um pai, um sol sonhando na alva.

...

Outro bom poeta da nova geração que evolui no sentido de uma discursividade maior é Rodrigo Garcia Lopes.

RODRIGO GARCIA LOPES é escritor, autor dos livros de poemas Solarium (Iluminuras, 1994), Visibilia (Setteletras, 1996; Travessa dos Editores, 2005), Polivox (Atrito Art, 2001), Poemas Selecionados (Atritoart, 2001) e Nômada (Lamparina, 2004). Mestre pela Arizona State University com tese sobre os romances de William Burroughs e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina, com tese sobre Laura Riding, é tradutor de Sylvia Plath: Poemas (Iluminuras, 1990) e Iluminuras: Gravuras Coloridas, de Arthur Rimbaud (Iluminuras, 1994), ambos em parceria com Maurício Arruda Mendonça. Em 2004 traduziu e organizou os livros Mindscapes: Poemas de Laura Riding (Iluminuras, 2004), O Navegante (do anônimo anglo-saxão, Lamparina, 2004) e em 2005 publicou Leaves of Grass/Folhas de Relva (Iluminuras, 2005), de Walt Whitman. Em 2007 publicou Ariel, de Sylvia Plath (em parceria com Maria Cristina Lenz de Macedo, Verus Editora). É um dos editores da revista Coyote, autor do blog www.estudiorealidade.blogspot.com e professor do departamento de Línguas Românicas na University of North Carolina – Chapel Hill (EUA).

RITO
(Rodrigo Garcia Lopes)

Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?
O que deu nesse mundo, caduco,
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era rito, um estado de espírito?
Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)
Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.
E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?

(De Nômada, Lamparina, 2004)

...

Poetas contemporâneos excepcionais, revelados nos últimos anos são o paulista Marcos Siscar, o carioca Eucanaã Ferraz, e os mineiros Affonso Romano de Sant’Anna e José Antonio de Souza Jacob. Entre estes,  Jacob, que sempre se  manteve afastado das manifestações e academias poéticas,  pode ser considerado poeta intemporal e sem escola, porque sua idéia poética tanto se ajusta no pretérito do tempo como nas demais expressões conjugáveis do presente ou do futuro. Pode ser considerado um dos mais importantes sonetistas da atual poesia na língua portuguesa, e alguns o relacionam num seleto grupo de poetas brasileiros de todos os tempos- “... Uma poesia depurada, silenciosa construída com uma destreza artesanal no lidar com a língua habitada por certo sentido clássico. Coerente com sua postura estética, sua forma é perfeita, demonstrando habilidade de versificação e pureza da língua. Sua poesia não é superficial como visão do homem, pois não se detém na camada superficial das cores, dos sons, mas mergulha nas angústias e prazeres do ser humano.


Jacob possui uma habilidade impressionante para lidar com as palavras. Ou melhor, uma volúpia pelas palavras e suas múltiplas possibilidades sonoras, visuais e semânticas… Dificilmente se desvia do verso decassílabo para o verso alexandrino ou para o hendecassílabo. Ele trabalha exaustivamente com o decassílabo, criando sonetos, quadras e sextilhas de fôlego, dentro de apuradas e inéditas temáticas, trazendo para a tradução dos seus versos temas subjetivos, místicos e filosóficos para compreensão imediata do seu leitor.

Chama atenção a preocupação com os problemas de ordem social e a  religiosidade do poeta pela sua reiterada profissão de Fé em Deus. É bom que nesse mundo conturbado existam as Almas Raras, cuja representatividade maior está no poeta José Antonio Jacob!

A obra de José Antonio Jacob é de suma importância para o meio literário brasileiro, que este apressado e impreciso comentário nem de longe sonha registrar. Vale a pena a sua leitura!..."

O Beijo de Jesus
(José Antonio Jacob)

Eu era criança, mas já percebia,
O pouco pão que havia em nossa mesa
E a aparência acanhada da pobreza
Que tinha a nossa casa tão vazia.

De noite, antes do sono, uma certeza:
A minha mãe rezava a Ave-Maria!
E ao terminar a prece eu sempre via
No seu olhar uma esperança acesa.

Após a reza desligava a luz,
Beijava o crucifixo, e a fé era tanta
Que adormecia perto de Jesus.

Depois que ela dormia (isso que encanta)
Nosso Senhor descia ali da cruz
Para beijar a sua face santa...

(Almas Raras - Ed 2007)

...

Afronta Impiedosa
(José Antonio Jacob)

Em cada rua há um vendedor de flores
E anda distante o Dia de Finados;
Casais se beijam murmurando amores,
Também não é Dia dos Namorados...

Essa cidade tem muros dourados,
Por onde passam brisas sem rumores,
E nos salões de imperiais sobrados
Divertem-se os fidalgos sem pudores.

E o céu é tão azul que dói na vista,
O mar parece capa de revista
E ao longe nos acena um iate à vela...

E o que mais nos afronta e desiguala
É o luxo se exibindo na novela
E essa pobreza muda em nossa sala.

(Poesia de Bolso - Ed 2011)

...

Desenho
(José Antonio Jacob)

A nuvenzinha que no céu passou,
Lépida e alegre, sem nenhum rumor,
Num pé de vento foi e não voltou:
Era uma folha num jardim sem flor...

Virando a folha um sol no céu brilhou
E fez surgir um dia de esplendor,
Veio uma sombra e o dia se apagou:
Era um desenho num papel sem cor...

Por que será que meu rabisco leve,
Que traço em suavidade colorida,
Esvoaça fácil feito um sonho breve?

E tudo que eu amei foi despedida...
E por que o meu destino não escreve
Uma história feliz na minha vida?

(Poesia de Bolso - Ed 2011)

...

Velho Órfão
(José Antonio Jacob)

Desde cedo esperei o que não vinha
E a minha vida foi perdendo o prazo:
Fui vendo a minha sombra mais sozinha
E o meu destino cada vez mais raso.

Enquanto andei do quarto até a cozinha,
Pesou-me o passo e me causou atraso,
Desfolharam-se os dias na folhinha
E o tempo foi morrendo em meu ocaso.

Súbitos longos anos tão estreitos,
Sinto vê-los perdidos sem proveitos,
E sem proveitos não me presto mais...

Eu sou aquele velho desolado,
Que vive a andar atrás do seu passado,
Como a criança órfã que procura os pais.


(Poesia de Bolso - Ed. ArtCulturalBrasil/2011)
...


DIABO TRISTE
(Marcos Siscar)

o diabo tem um olhar triste em que moram
pesados devaneios irmãos de todas as coisas
meu irmão mãos malhadas de passar a ferro
uma eternidade de palavras pernas magras
cruz de sua sede irrefletida os ombros curvos
sobre o pulmão o gesto fogueira do desejo
luzes foscas no cabelo as veias secas
como fontes em que o amor não entra mais
por mais que suplique não se tira o amor
não entra ar não sai não se tira mais seus ais
e sobre o corpo prometido a cal e argilas
e imobiliza enfim uma alegria intransitiva
deus é seu hospital


Poesia: discurso da intimidade. Mas a subjetividade pós-moderna já não é mais a mesma que se tinha na primeira metade do século XX. O sujeito pós-moderno existe na moldura da visibilidade total. A intimidade é um valor que mudou de figura.

Portanto, poetizar a intimidade do homem comum – que foi o maior valor poético do modernismo – tornou-se um projeto necessitado de revisão. No regime da visibilidade televisual total, todo mundo aparece para todo mundo, com suas caras, suas cores próprias, suas variedades, seus números. O universal só existe em estado de diversificação. O homem comum de repente pode ser uma mulher?

Nessa cultura, o sujeito apresenta-se a priori marcado. Marcado pela presença forte da figura autoral na esfera pública. Na antiga civilização do apenas impresso, tanto o político quanto o escritor eram entidades abstratas, que só existiam na folha de papel e podiam por isso falar em nome de um “neutro” que era o sujeito universal. Na civilização televisual, quem fala aparece visualmente diante de todos. A escrita adere à fala e a fala se dá em presença. A fala é performance. O sujeito é aquela pessoa física, performática, simulacral. A comunicação se dá no face a face da tela, que os jornais comunicam no dia seguinte. O romancista escreve seus livros, mas vai à TV discuti-los no quadro de sua própria vida. O sujeito poético é uma projeção desse novo tipo de indivíduo, dessa nova definição da intimidade, enquanto algo já não simplesmente privado. Tal é a condição da marca autoral na poesia pós-modernista.

Marcas de gênero: a questão das mulheres, da poesia feminina por oposição à dominante masculina de todo o sempre. O sujeito humano é mulher. O sujeito é mulher? A marca sexual: poesia gay, poesia lésbica. Marca racial – poesia negra, poesia indígena, etnopoesia. Marca pós-colonial: poesia bilíngüe, multilíngüe. Marca pessoal: a auto-referência burlesca, o dar-se em espetáculo, revelando a intimidade como ato de obscenidade poética.

Na poesia brasileira do fim do século, o sujeito marcado por gênero é de longe o mais importante nessa multiplicação de marcas. A poesia escrita por mulheres apareceu no cenário com força quantitativa. Citemos mais alguns nomes, além daqueles já mencionados: Olga Savary, Cora Coralina, Neyde Archanjo, Orides Fontela, Dora Ferreira da Silva, Angela Melim, Helena Kolody, Lupe Cotrim Garaudy, Josely Vianna Baptista, Zila Mamede, Lélia Coelho Frota, Dora Ribeiro, Iara Vieira e tantas outras, como as mais recentes :Clara Góes, Vivien Kogut, Janice Caiafa. Há também uma poesia que recoloca a questão negra, desta vez em primeira pessoa, e não mais em terceira como no arquetípico poema modernista de Jorge de Lima “Essa negra fulô”. Cito aqui três nomes importantes: Adão Ventura, Salgado Maranhão, Ricardo Aleixo. E fatos importantes, como a tradução de poesia ioruba por Antonio Risério e as antologias Ebulição da escrivatura e SchwarzePoesie/ Poesia Negra (esta, edição bilingue lançada na Alemanha). Em matéria de poesia com afinidade e inclinação a marca sexual, temos os nomes de Antonio Cícero, Valdo Motta, com Roberto Piva e Glauco Mattoso fazendo o elo entre gerações.



Guardar
(Antonio Cícero)

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guarda-se o que se quer guardar.


Maria Granzoto da Silva

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